segunda-feira, 8 de junho de 2009

Desafi(n)ando a Doutrina Bush

De volta aos anos 90, com o fim do mandato de Bill Clinton, assistiu-se a uma mudança radical nas orientações da política externa norte-americana. O democrata havia simbolizado, durante os oito anos que ocupou a cadeira de presidente da maior potência global, a possibilidade de utilização de ferramentas econômicas e multilaterais para garantir a primariza dos Estados Unidos da América (EUA) no cenário internacional, agora livre do embate Leste-Oeste. No caminho inverso, seu sucessor, George W. Bush, apostou na busca pelo mesmo objetivo por meios militares e unilaterais.
Nesse cenário, o governo do republicano erigiu, após os atentados de 11 de setembro, a Doutrina Bush, eixo paradigmático que sustentaria, até o final do governo em 2008, a política externa da potência. Em matéria de segurança, essa trazia, em linhas gerais, a importância do combate ao terrorismo – da mesma forma que a qualquer outra instituição que apoiasse atividades dessa natureza –, e, também, a ampliação dos poderes do Estado de intervir e investigar qualquer suspeita de atividade terrorista, inclusive entre os próprios norte-americanos natos – diluindo, assim, direitos constitucionais que antes prezavam pelo respeito à privacidade dos indivíduos. A Doutrina Bush, que é encarnada na National Security Strategy de 2002, estava envolvida em uma intensa retórica que freqüentemente associava signos como liberdade e democracia às questões de segurança não só dos EUA, mas como de todo o sistema de Estados. Nesse âmbito, a Doutrina Bush parece retomar algo da filosofia kantiana, presente em A Paz Perpétua: a simples assertiva de que o mundo democrático é o mundo da paz – dado que povos (que em sistemas democráticos governam suas nações) nunca querem a guerra.
Para além disso, um dos vieses mais significativos para a configuração de alguns temas da política internacional contemporânea parece ter sido o projeto de promoção da democracia empreendido pelos EUA, sustentado pela arrogância republicana presente no governo e pela própria Doutrina Bush. A análise dos discursos presidenciais e dos Secretários de Estado durante os oito anos em que George W. Bush permaneceu em Washington, evidenciam a direta relação que havia, no entendimento (ou no interesse) deles, entre democracia e segurança, para os EUA e para o mundo.
Às vésperas das eleições para a cadeira de presidente, no Irã, a maior democracia do mundo islâmico, o debate acerca da política externa desse país permanece quente entre os candidatos e eleitores. O atual presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, deu início a um ambicioso projeto nuclear no país, sob a retórica de que esse teria apenas fins pacíficos. Apesar das divergências, parece não haver mais dúvidas que o Irã busca se armar com ogivas nucleares, pelo menos aos olhos de Washington. De qualquer forma, cabe o questionamento acerca do alcance explicativo do paradigma mais evocado pela administração republicana, findada em 2008, da Doutrina Bush: o de que democracias não lutam entre si, e que, além disso, cultivando o sistema democrático pelo mundo a fora, colheremos nações totalmente desinteressadas em se armarem para estarem prontas a causar uma brecha na paz.
A reflexão concernente a esse tema específico nos faz elucidar pelo menos dois questionamentos que não devem (ou não deveriam) ser deixados de lado. Associar a existência do modelo democracia com a garantia de segurança internacional, pelo menos no caso do Irã, parece não ser uma teoria que se aplique a todos os casos. Nesse sentido, se não podemos tratá-la como uma teoria, ainda resta a esse raciocínio da Doutrina Bush servir simplesmente como retórica, como por várias vezes os EUA têm tratado seu discurso em política externa. Em segundo lugar, ascende a reflexão de que a democracia é um sistema político que dá margem a uma flexibilidade, possibilitando a transfiguração de vontades, ideologias e interesses “nacionais” em políticas públicas. Por esse motivo, não é dada a garantia de democracias estarão sempre desinteressadas empreender guerras (ou, que seja, ameaças) umas às outras.
O futuro ainda reserva algumas respostas – mesmo que não definitivas, sequer completas, como desejaríamos. A primeira delas deve ser buscada nos resultados das eleições iranianas, no sentido de compreender melhor qual será a demanda e o interesse nacional em matéria de política externa (bem como uma plausível avaliação do governo de Ahmadinejad). Do outro lado do muro, deve-se atentar para os novos caminhos da política externa norte-americana. Ainda é cedo para tentar esboçar qualquer tipo-ideal que categorizaria o projeto de inserção internacional formulado por Obama e sua equipe. De qualquer forma, alguns elementos da nova administração democrata já podem ser percebidos, dentre eles a visível mudança no tom discursivo do presidente (evidenciado pela disposição a reativar canais de diálogo antes interrompidos com outras nações), a mudança na estratégia militar no Afeganistão e no Iraque, e, mais importante ainda, a utilização da diplomacia para apresentar e construir a nova inserção dos EUA no mundo.


_____________________________


Refrerências

CASTRO SANTOS, M. H. ; YASSINE, A. . Exporting Democracy: Kantian Peace or Western Hegemony Expression?. In: 49th International Studies Association Annual Convention, 2008, San Francisco.

CASTRO SANTOS, M. H. . Exportação de democracia na política externa norte-americana: idéias, doutrinas e o uso da força. Revista Brasileira de Política Internacional, 2009.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos.Edições 70, 2008.

THE WHITE HOUSE. The National Security Strategy of the United States of America. Washington, 2002. Disponível em: http://merln.ndu.edu/whitepapers/USnss2002.pdf

VÁRIOS. The War on Terror and the American ‘Empire’ After the Cold War. Editado por: Alejandro Colás & Richard Saull. Routledge, 2005.

Nenhum comentário: