quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Palestra do Prof. Wolfgang Döpcke

Por Denise Galvão

Wolfgang Döpcke apresentou as guerras no Sudão como conflitos de alta complexidade. Tratou das duas principais guerras no país, que são a ocorrida no sul, em disputa com o norte, e o conflito em curso na região de Darfur, no oeste do país. Outras guerras sudanesas, como as disputas nas montanhas de Nuba, foram brevemente mencionadas.


Sobre o conflito norte-sul, ressaltou que está em curso um processo de paz, baseado em acordos que previram a autonomia qualificada da região sul, que reivindicava sua autodeterminação. A guerra, iniciada em 1983 pelo Sudan People’s Liberation Army (SPLA) contra o governo central, ocupado majoritariamente pela elite, do norte do país, durou até 2001-2003, dependendo do marco usado. O período mais acirrado do conflito foi em 1991, quando mudanças políticas na região do Chifre da África, com o realinhamento da Etiópia e da Eritréia, contribuíram para um cisma interno do SPLA. Os acordos de paz, assinados no Quênia, entre 2002 e 2005, estão atualmente em fase de implementação.

As principais reformas previstas são uma nova constituição, a concessão de certa autonomia política ao sul, a limitação da sharia ao norte e a distribuição dos recursos gerados pela exploração do petróleo – cujas reservas concentram-se na região centro-sul do país. Assuntos sensíveis ficaram de fora dos acordos, consistindo potenciais razões para recrudescimento das disputas entre as lideranças norte e sul. Ademais, tropas do norte ainda estão presentes na região sul.


A respeito do conflito em Darfur, Döpcke identificou os principais grupos armados da região como o Justice and Equality Movement (JEM) e o Sudan Liberation Army (SLA). Como instrumento de contra-insurgência de baixo custo, o governo sudanês armou milícias para conter a rebelião. A estratégia empregada foi massacrar a população civil de Darfur, como modo de suprimir a base dessas rebeliões, com operações de terra queimada, execuções em massa, estupros e outras formas de violência. Diante dessa quadro, houve tentativas de ingerência por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que enfrentou resistência da China, de países africanos e do Brasil. A alternativa foi a criação de uma missão da União Africana (UA), ainda que com mandado limitado e contingentes militares mal-equipados, para conduzir tentativas de cessar-fogo.


Após essas considerações, Döpcke comparou os dois conflitos armados no Sudão, identificando várias diferenças, que podem ser facilmente percebidas. Em Darfur, todos são muçulmanos e o conflito não tem o componente de disputa religiosa que tem no sul, onde há populações animistas. Adicionalmente, em Darfur a guerra não envolve disputa pelo controle das riquezas geradas por recursos abundantes presentes no território, como ocorre no sul – petróleo.


Por outro lado, ao analisar as causas profundas dos dois conflitos, Döpcke encontra semelhanças entre as situações no sul e em Darfur. Conforme o Black Book – documento que teria inspirado a revolta do JEM –, há uma profunda desigualdade regional e econômica no Sudão. Apenas 5% da população do Sudão, residentes no norte do país, dominam o Estado e aproveitam seus recursos, desde a independência do país, em 1956. Para Döpcke, a marginalização sistemática da maioria da população é causa profunda de todas as guerras no Sudão. Suas origens históricas remontam ao período anterior à ocupação do território sudanês pelo Egito/pelos otomanos. A exclusão social e política de grande parte da população é mantida pela preponderância cultural do arabismo, identidade fundamentada em mescla de determinantes religiosos, culturais e de descendência.


Ao avaliar a disputa por recursos naturais como causa dos conflitos sudaneses, Döpcke observa que, em Darfur, onde subsiste um islamismo tolerante, a competição intensificada entre os grupos sedentários e os nômades, realidade desde meados dos anos 1980, desintegrou os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos por acesso a fontes de água, por exemplo, devido ao processo de desertificação. Por sua vez, a exploração do petróleo do sul, revertendo-se em riqueza para a elite política e econômica de Cartum (no norte), sem se traduzir em benefícios para as condições de vida da população local, também gerou reivindicações de justiça.


Döpcke pondera que a disputa por recursos escassos em Darfur e abundantes no sul não são a única, nem a principal motivação das duas guerras. Suas causas fundamentais relacionam-se às identidades novas, formadas por meio das crises e da manipulação política pelo Estado. Por fim, Döpcke reputa que a nova operação de paz híbrida, que agregará tropas da ONU às já desdobradas forças da UA, não resolverá essas causas profundas de conflitos violentos no Sudão.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Paper: Conflitos em Debate

A Crise Humanitária em Darfur


Introdução

Por Isabelle Araujo
Desde o começo de 2003, as forças armadas do Sudão e a milícia conhecida como Janjaweed – apoiada pelo governo sudanês, e composto majoritariamente por soldados de origem nômade – conflagaram um conflito armado contra dois grupos rebeldes na região sudanesa de Darfur: o Exército de Libertação Sudanês (SLA, sigla em inglês) e o Movimento pela Justiça e Igualdade (IEM, sigla também em inglês). O objetivo político dos grupos rebeldes é forçar o governo sudanês a tratar dos problemas de subdesenvolvimento e marginalização política da região. Em resposta a essas reivindicações, o governo e o Janjaweed têm utilizado a população civil e grupos étnicos (Fur, Manalit e Zaghawa) como alvo de suas investidas militares, já que eles oferecem suporte aos rebeldes.

Em 30 de julho de 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a resolução 1556 exigindo que o governo sudanês desarmasse o Janjaweed, porém nada foi feito. Devido à grande pressão internacional foi assinado em maio de 2006 um acordo de paz entre o governo sudanês e uma das facções rebeldes. Mais uma vez, várias de suas determinações não foram cumpridas. Em 31 de agosto de 2006, o Conselho de Segurança da ONU deu um passo importante ao adotar a resolução 1706, a qual autoriza o envio de uma força de paz mais ostensiva. Segundo tal resolução, determina-se o deslocamento de tropas da ONU à região. Depois de grande resistência, o governo sudanês concordou com o envio destas tropas, mas sobre certas condições.

Desde então, poucos progressos foram visto com relação à questão no âmbito das Nações Unidas. O Conselho de Segurança tem apenas adotado os relatórios do Secretariado-Geral (resoluções 1755, 1769 e 1784 de 2007) , mas nenhuma resolução definitiva foi proposta. Ao mesmo tempo, aumentam as pressões internacionais por parte de governos e organismos internacionais. Há que se salientar, porém, que as pressões da ONU carecem de consistência interna, já que parte dos entraves são conseqüência de incongruências dentro do Conselho de Segurança advindas da resistência de China e Rússia em apoiar a resolução que prevê o envio de tropas de paz.

Como resultado deste conflito, que já dura quase cinco anos, vários vilarejos rurais foram queimados e destruídos e dezenas de milhares de pessoas foram mortas. Somando-se a esse quadro extremo de violência, tem-se o fato de que milhares de mulheres e meninas estão sujeitas a sofrer violência sexual nas regiões dos campos de refugiados. Estima-se que 2 milhões de civis inocentes tenham sido forçados a abandonar suas casas, muitos dos quais procuram abrigo no país vizinho, Chad. Atualmente, 3.5 milhões de pessoas dependem exclusivamente de ajuda humanitária para sobreviver. Esses dados alarmantes provam que este conflito é ainda mais extenso que o genocídio acorrido em Ruanda (1994).


Educação
Por Juliana Bessa
A educação se faz de extrema importância e tem caráter emergencial na atual situação do conflito em Darfur. Ela possui o poder de estruturar, estabilizar e trazer de volta o sentido de normalidade para aquelas que constituem uma das maiores vítimas da guerra - as crianças, principalmente aquelas que tiveram experiências traumáticas durante este período. Além disso, provê informações essenciais que ajudam a conviver com os problemas atuais, como prevenção do vírus da AIDS. A educação pode ser também elemento de construção da paz na medida em que ela ensina a tolerância e os valores em direitos humanos, dessa forma dá-se uma chance à reconciliação e abre-se a oportunidade para o processo de integração com o fim de formar uma sociedade estável e ordenada.
Atualmente Darfur conta com poucas escolas, quando existentes tais instituições sofrem com superlotação, falta de infraestrutura e de programa de treinamento adequado. Há ainda problema de remuneração de professores e falta de material básico. Os salários dos professores é um dos pontos mais contenciosos, a remuneração paga pelo governo é demasiada pequena para a sobrevivência e, como se não bastasse, ainda não é paga regularmente. O governo, por sua vez, reluta em aceitar o trabalho de professores voluntários de ONGs, pois delimita que a educação deve inicialmente ser realizada em árabe, segundo preceitos do Corão, mesmo havendo boa parte de deslocados cristãos.
Apesar do esforço de organizações humanitárias e comunidades locais, é estimado que em Darfur apenas 28% das crianças em idade escolar freqüentem a escola. No entanto, apesar das baixas taxas o número de meninas que freqüentam uma escola atualmente é o maior já registrado. Por volta de 70% e 80% da população dos campos são mulheres e crianças. De acordo com a UNICEF, mais de um milhão de deslocados são crianças abaixo de 18, sendo 320 mil crianças com idade abaixo dos cinco anos. No que diz respeito à situação dos jovens deslocados, a situação é ainda pior, sem acesso a escolas secundárias, pois são consideradas luxo na situação de conflito, eles possuem poucas chances de continuar os estudos, visto que para isso dependem de transporte para cidades próximas e dinheiro para mensalidade escolar. Essa geração estará vulnerável a exploração e será mais facilmente envolvida em casos de violência.
Após quatro anos de conflito, a postura da comunidade internacional com relação à Darfur é restrita a uma idéia limitada de ajuda humanitária, que não prioriza a área educacional. Normalmente, do total do fundo, não mais que 2% é dirigido à educação. Considerando que a educação é a chave para restaurar a esperança a Darfur é crucial que nesse momento, a ajuda humanitária integre a área de educação e possa coordenar-se com atividades de desenvolvimento de longo prazo.


Grupos Rebeldes
Por Denise Galvão

No início do conflito, havia apenas dois grupos rebeldes principais: o Exército/Movimento de Libertação Sudanês (SLA/M) e o Movimento pela Justiça e Igualdade (JEM). Este último grupo foi fundado por mulçumanos de Darfur fiéis ao líder islâmico Hassan al-Turabi, cujo partido apoiou o golpe de 1989 do presidente Omar al-Bashir. O primeiro grupo teve uma origem diferente. Ele formou-se inicialmente como uma milícia de auto-defesa da etnia Fur em resposta a distúrbios posteriores a um grande período de fome na região em 1987.
Com o desenrolar do presente conflito, estes grupos foram se fragmentando em novos grupos. Esta fragmentação originou-se em grande parte por disputas de poder internas entre os principais líderes destes dois grupos iniciais. Dessa forma, houve uma grande diversificação dos modos de agir e pensar dos grupos rebeldes em Darfur em contraposição à anterior unidade característica destes grupos. Entre os principais grupos que se desmembraram do Exército/Movimento de Libertação Sudanês (SLA/M), temos a facção SLM-Minni, SLM-Abdel Wahid e SLM-Unity. No caso do Movimento pela Justiça e Igualdade (JEM), pode-se citar como principais grupos desmembrados o National Movement for Reform and Development e o Jem Peace Wing. Além destes, ainda existe um número considerável de pequenas facções que surgiram durante os últimos desdobramentos do conflito.
Este aumento no número de grupos rebeldes atuando na região de Darfur resulta num aprofundamento da complexidade do conflito em Darfur. Além disso, o conflito entre estas diferentes facções gera maior instabilidade para a região e dificuldade em alcançar uma paz que satisfaça a todos. Nas últimas negociações de paz realizadas na Líbia, ficou evidente esta grande fragmentação do movimento rebelde em Darfur. Houve uma diversidade de opiniões acerca destas negociações e percebeu-se que, por enquanto, remotas são as chances de colocar todos os grupos numa mesma mesa de negociação com o governo.


O Papel da União Africana

Por José Joaquim

Embora uma organização regional nova – seu ato constitutivo data de 2002 – a União Africana (UA) nasceu da mutação da Organização da Unidade Africana, herdando toda a sua tradição de valorização do princípio da autodeterminação dos povos e preservação dos limites territoriais entre os Estados do continente. Por um lado, prevê-se o direito da União a intervir em um membro, de acordo com decisão da Assembléia, em graves circunstâncias (crimes de guerras, genocídio, crimes contra a humanidade); por outro, reconhece-se o direito dos membros a requerer intervenção da União para restaurar a paz e a segurança. O Conselho de Paz e Segurança da UA é responsável por funções como diplomacia preventiva, peace-making, operações de apoio à paz e intervenção, peace-building, reconstrução pós-conflito e ação humanitária.
Ante a relutância do Conselho de Segurança das Nações Unidas em dirigir esforços à resolução da crise humanitária na região de Darfur, que não comprometia interesses vitais dos membros-permanentes nem de possíveis contribuintes de tropas para uma missão da ONU, a alternativa africana foi escolhida para a gestão do conflito, de modo que foi enviada a African Mission in Sudan (AMIS), com 7 mil peacekeepers. Foi a segunda experiência de uma força multinacional africana. Contou com apoio financeiro da União Européia, logístico da OTAN e político formal do governo do Sudão. Não obstante, considerando as motivações da necessidade de uma intervenção para interromper ou, ao menos, minimizar os impactos da perseguição dos civis por grupos armados apoiados pelo governo central sudanês, pode-se afirmar que na montagem da AMIS há um erro de concepção que limita sua efetividade desde a origem. A opção do possível ante o ideal revela um grau de pragmatismo na decisão de intervir no Sudão.
Adicionalmente, houve outros obstáculos ao êxito da missão, como o número insuficiente de capacetes-verdes, como ficaram conhecidos, nas diversas localidades de Darfur, especialmente nas mais distantes, além da crescente quantidade de refugiados e de deslocados internos, do envolvimento do Chad no conflito armado e da dificuldade para obtenção de novas fontes de recursos e tropas qualificadas para a missão. Assim, a AMIS entrou em crise entre o final de 2005 e o início 2006, incapaz de conter a insegurança. Isso aprofundou o debate sobre o envio de uma missão sob a égide das Nações Unidas. A Resolução do Conselho de Segurança 1.706, de setembro de 2006, que condicionava a iniciativa ao consentimento das autoridades sudanesas, porém, foi rejeitada pelo presidente Omar al-Bashir, até junho de 2007. A AMIS deverá ser incorporada a uma reforçada missão de paz das Nações Unidas, ainda sob comando africano. A missão híbrida da UA-ONU está prevista para alcançar um efetivo de até 19 mil homens.


A China e o Conflito em Darfur

Por Isabelle Araujo

A posição chinesa com relação ao conflito em Darfur tem sido controversa. Os chineses defendem que o envio de tropas de paz das Nações Unidas para a região seria uma boa opção, e de fato a mais realista. Mas ao mesmo tempo, continuam a não apoiar a resolução do Conselho de Segurança da ONU que permitiria o emprego das forças de paz. Além disso, têm satisfatoriamente influenciado a Rússia a agir da mesma maneira. Essa situação diminui ainda mais a pressão internacional sobre o governo sudanês e dificulta sobremaneira a pacificação da região.
O principal argumento da China é o de que o governo sudanês não está pronto para aceitar forças de paz em seu território. Os chineses, porém, têm sido alvo de duras críticas da comunidade internacional. Como principal parceiro comercial do Sudão e o maior investidor e consumidor do petróleo sudanês, acredita-se que China tenha o poder de pressionar o governo de Al-Bashir a aceitar o envio de tropas a região. Mas não é do interesse chinês assumir tal atitude, já que eles temem que uma mudança de configuração de poder no país possa retirar sua posição privilegiada na exploração de petróleo sudanês.
O que é ainda mais notável é que, enquanto a maioria das companhias de petróleo ocidental se retiraram do Sudão devido a pressões por parte de organizações internacionais de direitos humanos, as empresas chinesas mantiveram-se lá, fingindo não ver a escalada de conflito ao seu redor e também não se importando que o governo sudanês use a renda auferida da extração de petróleo para comprar armamentos que serão usados no conflito em Darfur.
A escolha chinesa, contudo, não é sustentável no longo prazo. A demora na resolução do conflito pode fazer com que spillover effects causem a generalização do conflito para outras partes do país, comprometendo assim a estabilidade política, podendo inclusive causar falência estatal, seguida da perda de condições de exploração econômica do petróleo sudanês por parte das companhias chinesas.

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Referências Bibliográficas


Leaders: That other war; Sudan. (2007, Outubro). The Economist, 385(8551), 17. Acessado em November 18, 2007, de ABI/INFORM Global database. (ID do Documento: 1368629011).

Calling on China: The China-Darfur Connection. (2004, Agosto 5). Brookings Website. Acessado em Novembro 18, 2007 de
http://www.brookings.edu/opinions/2004/0805africa_cohen.aspx

Responsible China? Darfur exposes Chinese hypocrisy. (2006, Setembro 6). The Washington Pos, A 14. Acessado em Novembro 18, 2007 de
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/09/05/AR2006090501187.html

R. Scott Greathead (2007, November 6). Moving China on Darfur. Wall Street Journal (Eastern Edition), A.18. Acessado em November 18, 2007, de ABI/INFORM Global database. (ID do Documento: 13779671).50

Rebel Groups in Darfur (07/04/2006). Acessado em Novembro 18, 2007 de:http://www.pbs.org/newshour/indepth_coverage/africa/darfur/rebel-groups.html.
Who are Sudan's Darfur rebels?(12/10/2007).Acessado em Novembro 18, 2007 de: http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/7039360.stm.

Two main Darfur rebel groups will not attend talks(26/10/2007). Acessado em Novembro 18, 2007 de: http://www.savedarfur.org/newsroom/clips/two_main_darfur_rebel_groups_will_not_attend_talks/

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Era das Revoluções Legitimadas e a Garantia dos Direitos Civis

Por Amena Yassine*


É parte do processo revolucionário o retorno ao equilíbrio. Hannah Arendt observa que o próprio termo revolução indicava, em sua origem, momento de regresso ao estado de harmonia. Foi a Revolução Francesa a introdutora do significado de “ruptura” ao vocábulo, que, mais tarde, adquiriu o traço de “turbulência permanente” em função da intenção bolchevique de formar ativistas comprometidos a levar incansavelmente a Revolução de Outubro por todo o mundo. A experiência histórica – da Bastilha à Comuna de Paris e das massas de Petrogrado ao Muro de Berlim – revela, contudo, que a revolução contínua é contraproducente, pois intercala períodos de ingovernabilidade, autoritarismo e desrespeito aos direitos e garantias fundamentais. O homem revolucionário contemporâneo percebe que a tolerância e o debate – inclusive com a oposição – é menos um conluio entre classes sociais que uma posição política cujos fins maiores são o ser humano, seu progresso e evolução.
O argumento da existência de maquinação entre revolucionários e o “establishment” anterior a eles fundamenta a necessidade de revoluções ininterruptas, que, na França, fizeram alternar no poder girondinos, jacobinos, napoleões, bourbons e oranges. Eram governos ou de republicanos, ou de oligarcas, ou de monarquistas, ou de imperialistas. A primeira fraqueza dessas revoluções reside no fato de elas reduzirem os interesses nacionais a projetos políticos excludentes e parciais. Decorrente desta, a limitação seguinte é a perda de um dos objetivos fundamentais dos Estados em geral: a preservação do indivíduo. A rigor, são características comuns às administrações revolucionárias dos dois últimos séculos a subjugação de grupos étnicos e, entre outras, a intransigência religiosa, política e cultural. Um sem-número de exemplos históricos consubstanciam a observação alvitrada, basta lembrar da ex-Iuguslávia, do Irã, da ex-União Soviética.
É tendência das atuais democracias ocidentais a articulação política entre governantes e os vários setores de sua sociedade. Sobremaneira após o declínio da União Soviética, a ampliação da democracia no mundo tem possibilitado mudanças econômicas, sociais e políticas sem traumas generalizados. O Chile de Lagos e Bachelet, o Brasil de Lula, a Espanha de Zapateiro e o Reino Unido de Tony Blair são os mais notáveis exemplos do quadro descrito. Há quem entenda o diálogo entre conservadores, trabalhistas, liberais e socialistas, entre outros, como perversão do processo revolucionário. Francis Fukuyama, por sua vez, apresenta alternativa mais ponderada para o entendimento do fenômeno. Segundo ele, a democracia liberal constituiria a síntese das demais formas de governos. A despeito da polêmica que o assunto possa inspirar, uma conclusão é certa: com a dissipação da idéia de revolução como momento de ruptura, as diversas minorias deixaram de ser hostilizadas e passaram a compor o espaço de definição dos interesses nacionais de seus países. As revoluções democráticas são resultados do equilíbrio entre os distintos anseios sociais.
Depois de viver dois períodos de ruptura institucional, o Brasil experimenta, desde meados da década de 1980, a era das “revoluções legitimadas”. As Revoluções de 1930 e 1964 instalaram no País governos autoritários que, em nome da “causa revolucionária”, restringiram em vários aspectos as liberdades civis. Com o retorno ao regime democrático, a sociedade brasileira demanda participação ativa no processo de formulação política e rechaça o radicalismo. É indiscutível, por exemplo, que o êxito do Partido dos Trabalhadores-PT dependeu, em grande medida, da reformulação de seu discurso de “superação” da ordem econômica vigente, do abandono de uma retórica excludente e da adoção de políticas inclusivas e consensuais.
Importa observar, contudo, que há setores no continente em que a retórica da mudança radical e traumática ainda encontra eco. As recentes imagens de violência contra protestos de estudantes venezuelanos, que deixaram saldos de mortos e feridos, trazem à lembrança tristes recordações de momentos em que a diferença foi ferozmente reprimida em nome de projetos de organização social e política muitas vezes até louváveis e desejáveis, mas que se revelaram cruéis e intolerantes. As imagens também servem para demonstrar uma chocante realidade sobre o comportamento humano: os radicalistas parecem não ter aprendido com os erros do passado. Fenômeno que o controverso e mal-compreendido filósofo Nietzche certa vez denominou de “mito do eterno retorno”. Os desacertos se repetem, como se as vítimas dos campos de concentração, dos Gulags e das celas de tortura fossem mesmo apenas números ou fantasmas do passado. As imagens lembram mais. Lembram a vulnerabilidade dos regimes democráticos.
O regime democrático está longe de ser o ideal. Entre os filósofos, desde os clássicos aos mais modernos, a democracia nunca foi entendida como um sistema perfeito. É conhecido que para Aristóteles essa forma de organização política era tida como viciada, pois era um sistema político que privilegiava exclusivamente os pobres. Certamente Aristóteles não era opositor dos pobres. O problema daquele regime estava na palavra “exclusivamente”. Para o filósofo clássico, a melhor organização política era aquela que congregava todos indiscriminadamente, inclusive os ricos, e que contribuía para o desenvolvimento das virtudes de cada indivíduo. Era a República, não o autoritarismo das massas, o regime menos propenso às guerras em Paz Perpétua. De toda forma, na práxis, as democracias contemporâneas mostraram-se mais eficazes na promoção dos direitos das minorias, no diálogo produtivo com as oposições e na garantia de estabilidade durante os processos de alternância política.
Para que os povos do continente americano continuem a desfrutar do exercício pleno dos seus direitos civis, importa que os governos locais reforcem seu compromisso com a democracia. A cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia é a formalização, por parte dos Estados-membros do Mercosul, do entendimento da relevância do tema para o desenvolvimento regional e de seus povos. Merece uma discussão responsável e cuidadosa, pois, o ingresso da Venezuela ao bloco, para se evitar que o consenso formado a respeito dos benefícios da democracia seja rompido.
O ponto de equilíbrio a que chegaram os governos sul-americanos é o de revolução no seu sentido original. É um estado em que as desconfianças são mitigadas e o diálogo estabelecido. Em vez de suprimir a oposição, entende-se agora que melhor é integrá-la ao processo de definição do interesse nacional. Em vez da ruptura com o descontente, entende-se agora que melhor é convidá-lo à mesa para que se definam mais apropriadamente os interesses do continente. É o estágio maduro da interação com o outro. A exclusão da Venezuela desse processo é seguramente indesejável, mas a sua entrada no bloco deve servir para fortalecer o consenso, e não desfazê-lo. O ser humano e seu desenvolvimento devem estar acima de quaisquer projetos políticos pessoais ou partidários, e não o contrário.

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* Professora de Teoria das Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, UnB.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Security in Africa: The establishment of Political, Economic and Social Stability*

By Isabelle Araujo



The creation of a security community in Africa depends on, first, making sure that political, economic and social reforms are underway. Countries cannot act cooperatively in an unstable environment. A Standby Force cannot be made out of malfunctioning troops and a security force cannot be subordinated to a weak regional organization.
The three main structural sources of instability in Africa are: ethnic differences often increased by politicized internal struggles; lack of political maturity, resulting in a number of failed states throughout the continent; and the concentration of natural resources in small regions, responsible for many of Africa’s secessionist wars.
It might take decades for Africa to overpass these structural flaws. Though, the formulation of stable States, thriving economies, and egalitarian civil societies can lessen the effects of those historical and natural legacies.
Africa is now wrapped in the vicious circle in which internal instability leads to conflict, which causes State's failure, and consequent economic crashes, ultimately resulting in more instability. Hopefully, by working along with developed States, international organizations, NGOs, the World Bank, IMF, and also by making a strong local effort, Africans can leave this terrible vicious circle aside and move into a beneficial virtuous circle where solid States guaranteeing economic wealth, can transform the structure of civil society and increase the country's overall stability.
International help is decisive to rebuild African countries and, therefore, guarantee international security. Many African governments support terrorist activities or are too weak to prevent terrorist cells to reside in the country. Not to mention the various networks of drug dealers which are encrusted in those regions. The solution for some of African security issues would, at some extent, contribute to the solution of developed countries security weaknesses. It is not to say that the political and social reforms will solve, alone, the terrorism problem or the international drug trafficking. Though, it will certainly help to suppress illegal operations.
Building stronger States should be a priority in the peace building process. Alongside the political reform, come important macro-economic reforms to improve the nations' economy. Africa has had and astonishing rate of population growth in recent years, in spite of the spread of endemic diseases. At the same time, though, its Gross National Product decreased, and was not able to keep up with the increasing population. In addition, its rate of economic growth decreased significantly since the 1970s. Those circumstances generated economic stagnation. To reverse this trend for economic recession it’s mandatory for the States to, initially, establish a free market economy, in which governmental interventions are rare and not molded by personal interests.
The widespread idea of "African Solutions for African Problems" cannot be proved to be the right one. In order to solve its own security problems, Africa would need to engage in peace making and peace enforcement, promote arms control and disarmament, take collective decisions and solve interstate disputes. No organization in the continent is able to do that. African Unity is a good candidate for the job, but it has proved, by past experiences, to be really ineffective, or at least less effective than external agents. The organization lacks not only capable personnel and sufficient resources, but also active support from African States, which are much more concerned with their own political or socioeconomic problems. States' full engagement is crucial to the survival of any international organization, and should somehow be enforced rather than built on self-reliance.
Africa has to cope with a legacy of unstable political, economic and social institutions for, perhaps, many years to come. The continent needs external help to build strong political institutions, in order to complete its full insertion into international life, in a way that its people can profit from the globalization process, and not suffer from it.
The construction of Africa's Security System is, undoubtedly, a major step in this direction, but it will take more than the creation of regional organizations to get the job done. There must be initiated a process of countries’ internal reforms, given that States which have solid institutions are much more capable of assuming its internal functions as well as its international responsibilities.

Development is deeply connected to peace. So as long as the continent does not find its way to peace, it will suffer from the evils of poverty.
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* Nota: O presente artigo é um excerto de um Ensaio de mesmo título escrito pela autora em abril de 2007. Sua versão original é também em inglês, mas algumas alterações foram feitas para a adequação ao formato do blog.

Mapa: "Failed Attempts at Democracy" By Philippe Rekacewicz, Le Monde Diplomatique. Acessado no dia 09/11/07, url: http://mondediplo.com/maps/africademomdv51
Tradução da Legenda do Mapa:
- Processos democráticos quase respeitados
- Democracias de fachada ou regimes semi-autoritários
- Processos democráticos interrompidos por um golpe de Estado
- Processos democráticos impossíveis (conflito territorial, guerra civil, Estados decadentes controlando apenas uma parte de seus territórios)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A pobreza provoca a violência na África ou a África é pobre por ser violenta?

Uma cultura de violência e personalismo na política ainda marca os jovens Estados africanos

Por Denise Galvão

Há décadas o continente africano é vítima de uma coincidência dramática: conflitos armados e pobreza. Como as guerras não estão presentes em todos os contextos de miséria, conclui-se que a pobreza nem sempre é capaz de causar conflitos violentos por si só. Apesar disso, deve ser observada como uma causa – ela contribui de maneira decisiva para que as guerras aconteçam.

Grupos insurgentes costumam alegar que querem substituir um determinado governo para que, com o poder em mãos, possam defender segmentos marginalizados da sociedade em regimes nãodemocráticos. Afirmam que a idéia é conferir-lhes expressividade política e promover seus interesses sociais e econômicos, a fim de reverter injustiças. Essa motivação costuma atrair amplo apoio popular à iniciativa de travar uma guerra civil.

No decorrer de vários conflitos na África, porém, os combatentes empregaram táticas de guerra, como o recrutamento de crianças, a servidão sexual, as mutilações de civis, o deslocamento forçado e a limpeza étnica. Quando rebeldes voltam-se contra a própria população, torna-se evidente que há outros fatores envolvidos, além da luta contra a marginalização.

As causas fundamentais desses conflitos estão, em geral, relacionadas à fraqueza e à pouca – ou nenhuma – legitimidade dos governos. Uma cultura de violência e personalismo na política ainda marca os jovens Estados africanos, herdeiros do domínio colonial europeu. Essa fragilidade manifesta-se no caráter vulnerável a intervenções internacionais e na permissividade ao mercado informal, que possibilita a circulação de armas ilegais. Ao agir em nome de interesses privados, o Estado permite que outras forças políticas – incluindo grupos armados – preencham o vácuo do poder público.

É interessante notar que na África há um paradoxo entre a pobreza do povo e a riqueza da terra. Ao mesmo tempo em que o continente concentra os piores índices de desenvolvimento humano, também tem reservas de extraordinárias riquezas naturais, como petróleo, diamantes, ouro, cobre, cobalto e coltan (liga metálica usada na fabricação de componentes eletrônicos). Parte dessas riquezas foi drenada para financiar a violência contra as próprias populações africanas – como, por exemplo, os “diamantes de sangue” de Angola, Congo e Serra Leoa. Outra parte enriqueceu grandes investidores estrangeiros, com as bênçãos de governos instáveis e corruptos.

Conflitos prolongados e de difícil solução, como é o caso dos países que compõem o Chifre da África, não só causaram mortes, mas também pioraram as condições de vida dos sobreviventes – entre os quais imensas massas de refugiados. Dessa forma, percebe-se claramente a correlação entre miséria e conflitos armados: ao mesmo tempo em que a miséria consiste em uma causa profunda de guerras, também é intensificada pelas práticas de extrema violência, num ciclo vicioso dos mais cruéis.

Denise Galvão é mestra em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais da Universidade Cândido Mendes.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Resenha do Livro “Darfur Diaries – Stories of Survival”*

O livro “Darfur Diaries” é baseado na viagem feita por Jen Marlowe, Aisha Bain e Adam Shapiro em 2004 à conflituosa e ainda pouco conhecida região de Darfur, Sudão. Os viajantes já haviam estado em contato com outros conflitos armados em outras partes do globo e compartilhavam o desejo de conhecer mais sobre as hostilidades recentemente iniciadas nesta região africana. Eles registraram em vídeo parte de suas aventuras nas inóspitas paisagens do Chad e do Sudão e transformaram esse material em um filme cujo título é similar ao do livro.
O conflito em Darfur, na época da expedição tratado no livro, era bastante recente, pois havia sido iniciado um ano antes apenas(2003). Dessa forma, não eram muitas as informações sobre a situação na região. Essa deficiência era ainda acentuada pela pouca visibilidade da questão nas discussões internacionais. È neste contexto que os três viajantes partem ao Sudão em busca de maiores informações.
Com isso em mente, poder-se-ia argumentar que o livro não tem mais importância, uma vez que as características do conflito foram alteradas desde 2004. Mas isso seria um grande equívoco. O principal foco do livro é captar as emoções dos seres humanos envolvidos no conflito, principalmente, as crianças. Como o título ressalta, os viajantes estavam em busca das “histórias dos sobreviventes” contadas por eles mesmos. É baseado nisso que acredito que este livro merece ainda ser lido com bastante atenção. Os próprios autores reconhecem que a publicação do livro ocorreu em um ambiente em que já havia uma grande atenção voltada para Darfur e que este não serviria mais para alertar as pessoas sobre o conflito, mas sobre as pessoas nele envolvidas.
As diversas situações descritas, desde as mais tristes até as mais divertidas, criam uma forma fácil e, muitas vezes, prazerosa de inserir-se no mundo de Darfur. Os principais pontos abordados pela obra, segundo minha opinião, são os seguintes: a situação dos refugiados de Darfur no Chad, a preocupação das crianças e dos adultos com a educação das futuras gerações e a imagem que os rebeldes têm do governo sudanês e da milícias islâmicas.
A triste realidade dos campos de refugiados no Chad é descrita por meio de depoimentos de mulheres e crianças, que representam a grande maioria dos habitantes destas localidades. As mulheres mostram-se extremamente preocupadas com as questões da violência sexual e da falta de mínimas condições para criarem seus filhos. Em relação ao fato de estarem em um território alheio, os refugiados, em sua maioria, demonstram a intenção em voltar o quanto antes para sua terra natal. Algumas pessoas poderiam imaginar que os refugiados estão interessados em continuar recebendo ajuda das agências internacionais presentes na região. Mas, na verdade, há um verdadeiro sentimento de desconforto com a política de doação existente nos campos de refugiados. Por outro lado, os cidadãos do Chad encontravam uma dificuldade cada vez maior em lidar com os refugiados de Darfur, pois estes têm total prioridade para as agências internacionais e estão utilizando os recursos naturais de seu país, que são reconhecidamente escassos. Teme-se, neste caso, uma intensificação dos atritos entre esses dois segmentos.
É impressionante perceber também a importância que é dada pela população local à educação das crianças. São mostrados exemplos em que a população tenta organizar-se, sem ajuda internacional, para montar precárias escolas. Muitas vezes, o ensino, surpreendentemente, ocorre em baixo de árvores. Esta é uma maneira de garantir o futuro da população de Darfur e manter as crianças afastadas do conflito armado.
Outra questão a ser apontada são os depoimentos captados pelos viajantes que demonstram que a população de Darfur considera o governo sudanês o principal responsável pela terrível situação em que estão vivendo. Alguns chegam a afirmar que não tem raiva direta dos integrantes das milícias islâmicas, pois estes teriam sido enganados pelo presidente Omar al-Bashir. “We and the Arabs are compelled to this war on behalf of the government. (…) Our true enemy is the government of Sudan. We are not fighting the Arabs. We are fighting against the government who is using the Arabs to clean us out of the area and pressing them to replace us in our lands” (página 109).
Por fim, posso dizer que a leitura do livro ajudará muito no entendimento do lado mais humano do conflito em Darfur. Afinal de contas, na maior parte das vezes, é mais importante e interessante entrar em contato com as reais necessidades da população do que com as recorrentes notícias sobre a situação encontradas em sítios da Internet.
*O livro foi lançado em 2006 pela Editora National Books, New York.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Tropa de Elite: Estendendo a Crítica

Por Isabelle Araujo

O filme "Tropa de Elite" traz importantes críticas não só à polícia despreparada, corrupta e mal remunerada, mas também à ligação entre a corrupção policial e a política, à demagogia da chamada "consciência social", e ao fato de que quem financia o tráfico de drogas também suja suas mãos de sangue.
Agora eu fico me perguntando: quais serão as outras causas (e agravantes) do problema de violência no RJ?

Será que está só na polícia? Na sociedade inapta e que parece ser cega? Na corrupção em todos os setores e níveis? Na incapacidade dos políticos? No tráfico internacional de drogas? No lucro dos fabricantes de armas? Na decadência moral e social? Onde será que está?

O livro ‘Elite da Tropa’, ainda mais que o filme, nos faz perceber que a aparente causa de um problema, nesse sistema altamente corrupto e mal-estruturado, raramente é sua verdadeira ignição. E para mim, a causa maior, dentre um emaranhado de outras causas mais ou menos relevantes, é algo que a maioria de nós não percebe e que não transparece no filme, mas que vale a pena lembrar.
Porque será que o BOPE sobe a favela para matar? A resposta a essa pergunta é uma das causas mais invisíveis da violência: a impunidade. Provavelmente os ‘caveiras’ saibam que o sistema judiciário não vai manter os criminosos longe do convívio social, talvez eles saibam também que a Justiça no Brasil é benevolente demais e totalmente impermeável aos anseios da sociedade. Diante disso, eles decidem que podem fazer justiça com as próprias mãos. Será que eles estão errados ao fazer isso? Será que eles estão certos?



Ao ver o filme percebemos que esses policiais vivem uma guerra que a maioria de nós tenta ignorar. A atitude deles é reflexo desse estado de coisas. Eles matam para não morrer. Eles matam para nos proteger. Mas em que situações nós somos protegidos e em que situações nós somos vítimas desse sistema? E quando somos vítimas, a quem recorrer? À Justiça?

O filme nos dá uma idéia de quantos policiais "convencionais" se vendem ao tráfico. Mas você já se perguntou quantos juizes não fazem o mesmo? Não estou supondo que não existam juizes honestos no Brasil, longe disso. Quero acreditar que a honestidade no poder judiciário é regra, e a corrupção uma exceção. Mas se a impunidade fosse melhor combatida, dentro do judiciário, então talvez o BOPE não teria mais que usar meios de guerra (matar antes, para perguntar depois") , o tráfico não seria mais financiador de campanhas eleitorais e quem sabe os próprios policiais "convencionais" não seriam tão corruptos.

O Capitão Nascimento estava se questionando sobre quantas crianças morrem no tráfico para que um "playboy" ascenda um cigarro de maconha. E eu me pergunto: quantos pais, mães, filhos, professores, estudantes e médicos morrem por aí em decorrência de habeas corpus, atenuantes, reduções de pena etc.?

O filme reforçou o que eu já acreditava: a raiz social da violência se resolve no longo prazo, mas as perversas conseqüências do problema da violência devem ser combatidas no presente. Se o sistema não funciona, mude o sistema! E a justiça pode fazer isso usando seus meios.

Comentário
O filme é excelente, pois além de fomentar o debate público sobre a questão da violência no RJ, ele expõe a realidade perversa dessa guerra, por uma perspectiva distante da maioria de nós: daqueles que se sacrificam diariamente em nome da ordem pública. O filme nos dá a esperança de que, se é possível termos uma polícia honesta que ganha pouco e que faz um dos trabalhos mais arriscados do mundo, mesmo imersa num oceano de corrupção, é possível então formarmos uma polícia inteira nesses mesmos moldes e que talvez use de meios mais convencionais (institucionalizados) para impor a ordem. A questão seria: como iniciar essa reforma?


Recomendo também lerem o livro para que possam entender melhor essa questão da guerra contra o crime organizado e como esse sistema de corrupção em todos os níveis pode levar uma cidade inteira ao caos. Se puderem leiam também meu artigo sobre Violência no RJ (postado nesse blog), o qual escrevi antes mesmo de ler o livro ou ver o filme e diria que as minhas opiniões pouco se alteraram, já que tanto o livro quanto o filme corroboram muitas das minhas visões.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Darfur repete drama de Ruanda em câmera lenta

DOMINGO, 5 de novembro de 2006

ÁFRICA-Acordo de paz perde efeito com novos episódios de violênciaDarfur repete drama de Ruanda em câmera lenta


Curitiba – Há pouco mais de um mês, os sobreviventes da guerra entre tutsis e hutus em Ruanda fizeram uma manifestação em Kigali, tentando chamar a atenção das Nações Unidas para outro genocídio que ocorre na África. “Nós sobreviventes estamos do lado das vítimas em Darfur”, disse um deles. “Nós sabemos o que é perder nossas mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas.”A ONU classificou Darfur, no oeste do Sudão, como o pior desastre humanitário deste século. Desde 2003, estima-se que 200 mil pessoas morreram e outras 2 milhões foram desalojadas. O Sudão é o maior país da África e tem uma população de maioria árabe. Na região de Darfur, no entanto, concentra-se a população de origem centro-africana e também diversos grupos nômades.

Sentindo-se excluídos da política central de Cartum, um grupo rebelde chamado Fronte de Libertação de Darfur (depois rebatizado Exército de Libertação do Sudão) iniciou, em fevereiro de 2003, uma série de ataques a alvos do governo. Ao perceber que as forças armadas do país não estavam conseguindo conter os insurgentes, o governo do Sudão adotou uma nova estratégia de repressão, trazendo para o conflito a milícia armada Janjawed, um grupo de cavaleiros árabes muçulmanos extremamente violento que não faz distinção entre rebeldes e civis.“O uso da milícia foi adotado para expulsar toda uma população, simplesmente para diminuir a contestação política”, afirma a especialista em guerras na África e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Nacional de Brasília (UnB), Denise Galvão. Em maio deste ano, o Exército de Libertação do Sudão e o governo sudanês aceitaram firmar um acordo sobre Darfur. As mílicias Janjaweed seriam desarmadas e os militares rebeldes incorporados às forças armadas do país. A União Africana (UA) – grupo de países do continente –, com o consentimento do Sudão, enviou 7 mil soldados para monitorar o cessar-fogo.Apesar do acordo, a violência continuou. Duas forças rebeldes de Darfur preferiram não assinar o tratado de paz. “Essa é uma região muito grande e 7 mil homens é pouco. Além disso, essa força não é tão bem equipada, chegando a ser vítima da violência”, afirma Denise.No final do mês de agosto, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 1.706, que prevê a troca dos homens da UA por 20 mil soldados das Nações Unidas. O governo sudanês rejeitou a resolução e comprou briga com o órgão.No último dia 20 de outubro, o enviado especial da ONU ao Sudão, o holandês Jan Pronk, foi considerado “persona non grata” pelas forças armadas e expulso do país. A ação do Sudão contra Pronk foi aparentemente motivada por um texto publicado por ele em seu blog pessoal – www.janpronk.nl –, em que disse que as forças armadas do Sudão sofreram grandes derrotas em dois conflitos recentes contra rebeldes em Darfur.Com pouco peso político nas questões internacionais, o Sudão regularmente decora os discursos de líderes mundiais, mas, na prática, o país continua sendo palco do que muitos já nomearam de “Ruanda em câmera lenta”. Apenas nesta última sexta-feira, foram 63 mortes, metade das quais crianças.“O genocídio no Sudão mostra o grande fracasso da ONU. Mesmo com a experiência de 1994 (Ruanda), a humanidade não aprendeu a lição”, conclui Denise.

Breno Baldrati

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Violência no Rio de Janeiro: Unindo forças no combate ao crime organizado

Por Isabelle Araujo


Nas últimas semanas o Rio de Janeiro tem enfrentado um dos piores períodos de violência de sua história. Dezenove pessoas morreram no último confronto entre policiais e traficantes na Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo do Alemão e uma das zonas mais perigosas da cidade. E, ao que tudo indica, essa situação de ‘guerra’ e insegurança tende a se agravar nos próximos meses, dado que as autoridades de segurança do Rio quebraram o "pacto silencioso" com as facções criminosas.

Quem mais sofre com essa "guerra não-declarada" é a população civil, que se vê desprotegida em meio aos tiroteios. Os mais afetados ainda são os moradores das favelas, onde os confrontos ocorrem com cada vez mais freqüência e onde as balas perdidas matam cada vez mais inocentes.

Eles não são os únicos. A cidade do Rio de Janeiro é permeada por favelas, inclusive nos bairros mais nobres da cidade, o que gera focos de violência em diversos pontos. Assim, a classe média e os ricos também se sentem ameaçados, mesmo que disponham de meios privados de segurança.

Ricos ou pobres, muitos cariocas se acostumaram com essa situação de violência e aprenderam a conviver com a insegurança. Muitos pensam que isso tudo é normal, mas pensar assim é extremamente nocivo à busca de soluções. Não se pode tentar diminuir a gravidade do problema. A situação no Rio de Janeiro é crítica já há muitos anos e precisa ser tratada como tal, de forma aberta e extensiva.

As causas do aumento da violência urbana no Rio já são amplamente conhecidas: falta de planejamento urbano durante décadas, ausência de medidas para a inclusão social das massas migrantes, medidas imediatistas de caráter agressivo, falta de discussões amplas sobre a urgência de planos concretos e sólidos de segurança pública, e uma extensa lista de outras causas diretas e indiretas que durante anos agravaram ainda mais a situação.

Em diversas regiões do Rio de Janeiro, o vácuo de poder e a situação de ausência do estado de direito possibilitou a formação de grupos armados não-estatais que passaram a ditar as regras e a estender sua esfera de influência para além dos seus domínios originais (favelas), ocasionando um grande sentimento de insegurança na população em geral.

O Estado, na qualidade de detentor do monopólio do uso legítimo da força, deve combater esses grupos criminosos com mãos firmes e usar de meios violentos sempre que for necessário. Pois, quando a força é controlada por mãos erradas, é imprescindível que o Estado, com o respaldo da sociedade civil, tome atitudes enérgicas para suprimir esses grupos.

As estratégias usadas pelo Estado no combate ao crime são geralmente estratégias do tipo topo para a base, pois devem atuar no sentido de desestruturar as redes do crime organizado, constituir uma polícia mais forte e mais inteligente e formar uma justiça rápida e transparente.

É preciso entender que o combate às organizações criminosas no Rio de Janeiro é uma guerra assimétrica e difusa, na qual as forças políciais são os agentes do Estado no combate ao crime organizado. Os policias devem ter como principal objetivo proteger a vida dos cidadãos inocentes. Para isso, eles precisam ser bem treinados e contar com modernos aparatos de inteligência e logística.

Talvez as polícias locais tenham muito a aprender com as Forças Armadas. Ao invés de tentar chamá-las para atuar no Rio de Janeiro, os governos locais poderiam usá-las como exemplo. Estudar a estratégia que deu certo nas favelas do Haiti e aplicar algumas táticas que, à luz de um plano de segurança pública específico para a realidade carioca, poderiam ser usadas também nas favelas daqui.

As Forças Armadas não são as mais capazes em lidar com questões de segurança pública, essa não é sua função. Contudo, elas podem ajudar de forma indireta na luta contra o crime. Uma boa opção seria aliar os aparatos de inteligência, logística e comunicação, bem como o conhecimento de táticas refinadas de guerras difusas (como, por exemplo, a guerra de guerrilha), a uma estratégia consciente e pensada especificamente para segurança pública, formulada por governos locais. Isso ajudaria a polícia a agir com precisão e cautela e poderia ser feito através do emprego de equipamentos militares e do treinamento de uma força policial especial que disponha dos meios militares necessários para o combate à criminalidade urbana e difusa. A polícia federal, dispondo de meios próprios, estaria também aliada a essa estratégia, visto que ela é a responsável por combater redes nacionais e internacionais do tráfico de drogas e de armas.

Porém, nessa estratégia topo-base, a atuação somente das polícias não basta. Um outro braço do Estado também precisa se engajar na luta contra a criminalidade: a justiça. Os criminosos precisam ser exemplarmente julgados e condenados. Recentemente, o líder da ONG AfroReggae (que ajuda a tirar jovens e crianças do tráfico de drogas), José Pereira de Oliveira Júnior, disse em entrevista ao jornal Estado de São Paulo: “quando eu era jovem, a gente brincava de polícia e ladrão. Eu queria ser policial. Hoje na favela todo mundo quer ser ladrão”. Diante disso, vê-se que o crime precisa voltar a ser considerado errado. A justiça precisa punir os líderes das organizações criminosas, o que servirá de exemplo aos jovens, para que eles não se aliem ao tráfico de drogas.

Enquanto o Estado utiliza estratégias que em geral são do topo para a base, a sociedade civil usa estratégias que atuam da base para o topo, que na maioria das vezes são projetos sociais visando prevenir que o crime organizado ganhe força.

O Rio de Janeiro precisa de iniciativas que diminuam as desigualdades sociais, que dêem emprego à grande população ociosa e que incentivem os jovens a estudar e a praticar esportes. Mas, que sobretudo, promovam a igualdade de oportunidades. Essa é a fórmula para se criar uma sociedade verdadeiramente meritocrática e com alta mobilidade social, na qual os cidadãos tenham vontade de lutar por um futuro melhor e não vejam no crime uma saída fácil para sua condição de pobreza.

As organizações da sociedade civil são extremamente eficazes em lidar com as comunidades locais em estratégias da base para o topo, pois eles conhecem melhor a população local, tem maior responsabilidade e transparência na execução de projetos e conseguem identificar melhor suas carências. É por isso que os governos precisam incentivar, apoiar e financiar iniciativas da sociedade civil que promovam a igualdade, a inclusão social e a prática de esportes, o que enfraquecerá a força motriz das organizações criminosas.

Para que os planos de segurança pública dêem certo, essas duas estratégias (topo-base e base-topo) precisam andar juntas, mesmo que usem diferentes meios. As duas vias de combate ao crime -- social e policial – devem não só operar simultaneamente, mas se integrar. Devem-se estabelecer estratégias de prevenção e de ação. A sociedade precisa sim de mais escolas, mais centros esportivos, mais hospitais, melhores professores, melhores médicos, melhores salários, mas precisa também de policiais bem treinados e com maior poder de ação na luta contra o crime.

O cidadão quer voltar a acreditar em uma polícia justa e eficiente, e em um governo livre de membros envolvidos com o tráfico de drogas. Mas, para isso é fundamental uma polícia séria, transparente, inteiramente submissa ao Estado, não conivente com o crime, e com amplo poder de atuação. Mas, falta vontade política, porque as reformas a serem implementadas são vistas como impopulares e trabalhosas. E, a sociedade civil não conseguirá acabar com a violência sozinha. O Estado está provando que também não. A verdade é que Estado e sociedade civil precisam trabalhar juntos no caminho para a paz.


Referência

Rodrigues, Alexandre & Vieira, Márcia. A População entre a Polícia e o Trafíco. O Estado de São Paulo, SP, 03/06/2007.