quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Brasil precisa ter uma política de defesa

Clóvis Brigagão: cientista político da Universidade Cândido Mendes; para analista, Brasil está 'mudando de padrão internacional', mas ainda tem problemas a resolver pela frente

O Estado de São Paulo, 14/10/2009, Wilson Tosta, RIO

O cientista político Clóvis Brigagão, da Universidade Cândido Mendes, não vê exagero na ideia de que o Brasil está ganhando importância internacional. "De uma espécie de baleia, está se transformando num peixe mais ágil", diz. Pondera, porém, que o País não deve virar "uma superpotência".

Em entrevista ao Estado, Brigagão aponta ainda rumos a corrigir. "O Brasil precisa ter uma política de defesa."

O que há de exagero e verdade sobre crescimento da importância do País nas relações internacionais?

Acho que o Brasil está mudando de padrão internacional. Vamos usar uma figura: de uma espécie de baleia, está se transformando num peixe mais ágil. Não digo que seja um tubarão, mas um peixe mais ágil nesse mar internacional. Estou usando a imagem em função da questão do pré-sal, que vai ter um padrão diferente, e também pela necessidade de, em função deste pré-sal, o Ministério da Defesa reaparelhar num padrão mais alto as Forças Armadas, principalmente a Marinha, com submarinos convencionais e de propulsão nuclear. Se adquirirmos esses equipamentos, junto com o pré-sal, com novas compras que o Brasil vai fazer junto à França, aos Estados Unidos ou à Suécia, isso reequipa o Brasil para um status mais alto. Não digo que vá virar uma superpotência, mas vai adquirir uma postura.

O País estaria virando uma potência média?

O Brasil já é uma potência média, no sentido econômico. Está entre os Brics, dirige o G-20, foi incorporado ao G-8, está querendo assumir uma cadeira no Conselho de Segurança, é um ator global, no sentido econômico estratégico. Agora, está alçando um voo um pouco mais alto, com essa questão da ligação entre a descoberta do pré-sal e um sistema de defesa mais elevado, mais sofisticado.

Temos condições de dar conta de tudo isso no plano internacional?

Temos. Talvez o que nos falte seja gestão de recursos humanos. O Itamaraty tem os seus mil e tantos diplomatas experientes, profissionais, está formando cem por ano, mas isso é pouco para o que o Brasil pretende ser como ator global. Então, é preciso formar mais profissionais na área econômica, na área tecnológica, na área política, na área das missões de paz, na área do multilateralismo. Além do Itamaraty, têm de entrar as universidades e as corporações empresariais.

A ideia de um Brasil mais assertivo nas relações internacionais, então, não é megalomania?

Não, não é megalomania não. Isso é coisa do atual governo? É do atual governo, porque é mais ativo, mas é dos governos do Brasil, mais recentes, e também de todos os para trás. É uma política de Estado.

As compras de armas fazem sentido, do ponto de vista estratégico?

O que o Brasil precisa é ter uma política de defesa. Temos ainda uma política do Exército, uma da Marinha e uma Aeronáutica que toma conta de aeroporto. Temos que ter uma política de defesa integrada - os nossos objetivos são esses.

O senhor acha que há uma corrida armamentista na região?

Não acho, mas está havendo uma capacidade de compra das Forças Armadas, o que pode levar a uma corrida. Um vai querer igualar o outro.

domingo, 23 de agosto de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: diálogo estratégico com a China.

por Diogo Ramos Coelho

No dia 01 de Abril de 2009, o presidente Obama e o presidente Hu Jintao reuniram-se à margem da cúpula do G20 em Londres. Os dois chefes de Estado, na ocasião, decidiram estabelecer o “U.S.–China Strategic and Economic Dialogue” para aprofundar as discussões e a cooperação sobre diversos assuntos de interesse comum, da nuclearização da Coréia do Norte à crise financeira. A Secretária de Estado Hillary Clinton e o Conselheiro de Estado Dai Bingguo ficaram responsáveis por presidir a parte “estratégica” do diálogo, enquanto o Secretário do Tesouro Timothy Geithner e o Vice Premier Wang Qishan ficaram responsáveis pela parte “econômica”. Militares e outros oficiais de ambos governos também devem intensificar o contato e o intercâmbio de projetos e informações.

Obama encontra ampla – e relevante – base de apoio à iniciativa. Henry Kissinger  defendeu que as relações sino-americanas fossem levadas a “outro nível” e Zbigniew Brzezinski advogou a criação de um G2, grupo formado por EUA e China para articular políticas de combate à crise econômica, aos efeitos da mudança climática, além de procurar limitar a proliferação de armas de destruição em massa e até ajudar a resolver o conflito entre Israel e países árabes.[1] O aprofundamento das relações atende a uma constatação óbvia: tanto Washington como Pequim não conseguirão resolver seus problemas caso tentem agir sozinhos. A interdependência sino-americana atingiu níveis tão altos a ponto do professor de Harvard Niall Ferguson, entre outros analistas, recorrer continuamente ao termo “Chimérica” para caracterizá-la.

Chimérica é fruto das interações no nível sistêmico que resultaram na globalização. Não é um projeto político, deliberado e articulado. Foi um processo construído com base no crescimento do comércio, dos fluxos financeiros e, agora, da interdependência política entre os dois países. O crescimento chinês é, pois, fortemente dependente do acesso aos principais centros econômicos do mundo, em especial os EUA. A relação sino-americana foi uma das bases para o ciclo de expansão da economia internacional no início do século XXI. Reforçar a ordem econômica internacional é, portanto, do interesse dos dois países – e de todos os demais beneficiados dos altos níveis de crescimento observados nas décadas recentes.

No centro da atual crise financeira estão os desequilíbrios entre os EUA, com seu déficit na balança de pagamentos ultrapassando 1% do produto interno bruto mundial, e os países que o financiam: exportadores de petróleo, Japão e os países emergentes na Ásia.[2]  Entre estes, a relação China–EUA é a principal. São as elevadas reservas chinesas de dólar que financiam grande parte do déficit americano. A poupança chinesa foi um dos fatores que ajudou a manter em patamares baixos as taxas de juros nos EUA e, assim, estimulou a expansão da oferta de crédito. Da mesma forma, a China possui grande interesse em um dólar estável, já que a possível desvalorização da moeda americana diminuiria o valor das suas reservas. Ainda, o crescimento chinês está baseado em uma economia exportadora e na manutenção de alto superávit. Portanto, para fornecer soluções à atual crise, Chimérica – a parceria entre o grande poupador e o grande gastador – é a chave.

Os interesses comuns entre China e EUA, por outro lado, não estão restritos ao nível econômico. A China também desempenha papel fundamental na mitigação dos efeitos da mudança climática e possui grande influência estratégica em questões de segurança na Ásia. O clima, por exemplo, é uma das questões-chave da relação sino-americana. Apesar da China configurar hoje como o maior emissor de gás carbônico, percebeu-se, nos últimos anos, a grande vulnerabilidade chinesa aos efeitos da mudança climática. Grandes populações vivendo em terras baixas (em deltas de rios); dependência de combustíveis fósseis para sustentar o crescimento; vulnerabilidade ao derretimento das geleiras; alta poluição; e a ruim imagem de vilão climático favoreceram as correntes dentro da elite chinesa que demandavam maior engajamento global nos esforços de contenção dos danos ambientais. Ainda, a China é fundamental para controlar o regime de Kim Jong-il, estabilizar as disputas entre Índia e Paquistão, além de ser a principal potência para o equilíbrio estratégico na Ásia e ter grande peso nos regimes internacionais de segurança.

Demandar maiores ações conjuntas de Washington e Pequim atende, portanto, a uma lógica inegável. No entanto, a intensificação da parceria entre EUA e China poderá ser inibida pelo fato dos dois países possuírem interesses e valores distintos. Um dos principais obstáculos à cooperação efetiva é a diferença nas visões sobre soberania, sanções, intervenções humanitárias e transparência governamental. A necessidade de acesso de Pequim a recursos naturais e a mercados externos, aliado ao repetido mantra de não misturar negócios com política, choca-se com os esforços ocidentais para prevenir abusos humanitários e melhorar a governança nos países subdesenvolvidos – por exemplo, em países como Angola, Republica Democrática do Congo, Mianmar (ou Birmânia) e Sudão, onde empresas chinesas possuem grandes interesses. A dependência chinesa à exportação de petróleo também se mostrou um obstáculo para constranger o programa nuclear iraniano. A China opôs-se a maiores sanções econômicas ao Irã e restringiu os esforços da União Européia e dos EUA para controlar a saída de dinheiro iraniano por meio de bancos estrangeiros.

A cooperação em temas como controle de qualidade dos produtos e proteção ambiental é, ainda, dificultada pelo sistema político e econômico chinês. Pequim possui baixa capacidade em impor ações restritivas aos agentes locais, pois eles têm grandes incentivos em manter o status quo. Além disso, a falta de transparência e de accountability dificulta a implementação de leis que visam combater problemas como a mitigação da mudança climática. Políticas ambientais efetivas dependem, por exemplo, de transparência nos relatórios de emissão de gases e substâncias nocivas. A falta de transparência também pode dificultar as relações militares, uma vez que ações sigilosas podem levar a erros de análise e à falta de confiança. Na área econômica, os EUA insistem em mudanças na política monetária, abertura da economia e na proteção de direitos autorais. A China, em contraste, geralmente quer ser deixada livre de restrições para conduzir os negócios ao seu modo ou, ao menos, assegurar que a agenda das políticas de Washington não seja onerosa para Pequim.

Uma política de aproximação com a China deve ser cautelosa para não provocar descontentamentos e acusações mútuas. Deve, ainda, envolver outros países, como Japão, União Européia e outros Estados na Ásia. No entanto, é importante perceber que, independentemente da retórica de políticos e burocratas, os fatores sistêmicos operam por uma lógica própria – e a lógica da globalização favorece a interdependência. Dessa forma, melhor se os esforços políticos convirjam para aprofundar as tendências de integração. Uma parceria estratégica entre Washington e Pequim pode ainda soar distante e difícil. Porém, há intensos diálogos. Para que esse contato seja aprofundado, resta saber se maior flexibilização partirá do oeste ou do leste.



[1] ECONOMY, Elizabeth C.; SEGAL, Adam (2009). The G2 Mirage. Foreign Affairs, Maio/Junho de 2009.

[2] FERGUSON, Niall. Beyond the Age of Leverage: Alternative Cures for the Global Financial Crisis (2009). Disponível em: http://www.niallferguson.com/site/FERG/Templates/ArticleItem.aspx?pageid=203. Acesso em: 06 de junho de 2009.

sábado, 11 de julho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: nova estratégia para o combate à proliferação de armas nucleares.

por Diogo Ramos Coelho.

No dia 05 de abril de 2009, em Praga, Obama afirmou que sua administração iria reduzir a importância de armas nucleares nas estratégias de segurança nacional – um passo, nas palavras do presidente, para a construção de um mundo livre de armas nucleares.[1] No discurso, Obama também ressaltou as conversas com o presidente russo Dmitri A. Medvedev para iniciar negociações para novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas. Foi prometido, também, ativo engajamento do Executivo para a ratificação do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (Comprehensive Test Ban Treaty), o qual sofreu, no passado, forte oposição no Congresso.

O discurso do presidente americano tenta inserir os EUA nas novas dinâmicas de combate à proliferação de armas nucleares. Desde o fim da Guerra Fria, aumentaram regularmente os perigos associados ao uso dessas armas e as complexidades referentes à proliferação. Os EUA enfrentam, hoje, novos desafios, os quais incluem: o risco do terrorismo nuclear; programas nucleares “clandestinos” em Estados como Irã e Coréia do Norte; o risco de transferências de armas e tecnologias nucleares no mercado negro; a potencial perda do controle estatal de armas ou materiais nucleares, especialmente no Paquistão; o maior peso das armas nucleares para as estratégias de defesa na Rússia; e as incertezas em relação ao planejamento estratégico na China. Para lidar com esse complexo quadro, a política nuclear americana deve concentrar-se em três principais estratégias: combater o terrorismo nuclear, impedir que novos Estados adquiram armas nucleares, e cooperar com a Rússia para diminuir desconfianças e desenvolver políticas conjuntas de desarmamento.[2]

Em relação ao terrorismo nuclear, os mecanismos tradicionais de deterrence não funcionam. Grupos terroristas não possuem território nacional definido contra o qual os EUA poderiam retaliar. Por outro lado, esses grupos também não possuem a capacidade de produzir armas ou materiais nucleares. A principal questão no combate ao terrorismo nuclear, portanto, é o acesso de militantes extremistas a armas e materiais fabricados por Estados. Essa observação leva à conclusão lógica de que a probabilidade de um ataque terrorista com armas nucleares seria significativamente reduzido caso as armas fossem efetivamente abolidas e os materiais para fissão atômica eliminados. No entanto, um mundo livre de armas nucleares é, hoje, uma esperança ingênua e irreal. Todos dos países detentores de armas nucleares atribuem a elas importante peso nas políticas de segurança. Além disso, Estados não-nuclearmente armados como Canadá, Japão, Alemanha e África do Sul possuem materiais físseis que poderiam ser usados para construir uma bomba. Ainda, não há mecanismos eficazes à disposição dos Estados ou de instituições internacionais para averiguar a completa eliminação das armas nucleares ou de material físsil. O principal desafio – para os EUA e outros governos – é, portanto, encontrar mecanismos para balancear a necessária redução dos arsenais atômicos enquanto garantem a segurança das armas e materiais existentes para prevenir o contrabando. No combate ao terrorismo nuclear, o Paquistão se apresenta como o maior desafio: um Estado de frágil governabilidade, com a presença de grupos terroristas e detentor de armas nucleares.

Já o principal meio para impedir que novos Estados adquiram armas nucleares é fortalecer os instrumentos existentes no regime de não-proliferação. O pilar de sustento do regime é o Tratado de Não-Proliferação nuclear (TNP), concebido há mais de 30 anos para prevenir a proliferação de armas nucleares para além daqueles Estados que já as possuem. Sob as regras do tratado, Estados nuclearmente armados aceitam ajudar Estados não-nuclearmente armados a desenvolver energia atômica pacífica caso eles renunciem à busca por armas nucleares. Porém, essa barganha possui uma lacuna que tem sido explorada por nações como a Coréia do Norte e Irã: estes países são autorizados a produzir material nuclear que pode ser usado para construir bombas sob a cobertura de programas nucleares civis. Essa lacuna é ainda agravada pelo renovado interesse pela energia nuclear em face da perspectiva de crescentes limitações na oferta de combustíveis fósseis. Além disso, uma das falhas mais persistentes do regime é o desarmamento das potências nucleares: um objetivo cujo não-cumprimento é fonte de diversas críticas por parte dos demais Estados signatários do TNP.

O regime de não-proliferação atravessa atualmente um momento delicado em que existem pressões importantes em cada um dos seus pontos fundamentais (fins bélicos e pacíficos da tecnologia nuclear, cooperação tecnológica e desarmamento nuclear) que coincidem com a fragilização do próprio TNP e dos demais componentes do regime. No entanto, não se deve concluir que a não-proliferação tradicional falhou. O objetivo do governo Obama deve ser o desenvolvimento de mecanismos que ativamente desvalorizem a posse de armas nucleares e que criem as condições para sua eventual erradicação, além de tentar impedir que elas caiam nas mãos de Estados ou grupos inimigos. Nesse sentido, é fundamental  reafirmar o comprometimento dos EUA com o fortalecimento do regime de não-proliferação, principalmente por meio da aprovação no Congresso americano do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares, da conclusão com a Rússia de novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas, além do fortalecimento das salvaguardas e instrumentos de inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Por fim, para renovar os esforços de desarmamento e de combate à proliferação é imprescindível um avanço no diálogo entre EUA e Rússia – os detentores dos maiores arsenais nucleares. Se os riscos de um confronto entre EUA e Rússia reduziram-se drasticamente com o fim da Guerra Fria e com o aumento da interdependência em virtude da globalização, por outro lado, o sucesso nas negociações de novo tratado bilateral de controle de armas nucleares requer esclarecimentos sobre as visões estratégicas de longo prazo por ambos países. Como parte de um diálogo revitalizado, importantes questões devem ser respondidas: EUA e Rússia possuem uma visão comum das implicações globais das suas políticas de desarmamento, uma vez que muitos países ligam a vitalidade do regime de não-proliferação nuclear ao progresso na redução dos arsenais russos e americanos? Quais planos cada lado possui para a modernização das forças militares? Esses planos envolvem maior dependência em relação à capacidade de deterrence das armas nucleares? Qual o peso das armas nucleares para as considerações geopolíticas da Rússia, levando em consideração o desgaste das forças militares convencionais do país no pós-Guerra Fria? As respostas a essas perguntas serão os guias para uma cooperação efetiva em políticas de desarmamento.

O discurso de Obama em Praga reafirmou o principal objetivo da política nuclear dos EUA: impedir o uso de armas nucleares por qualquer Estado ou ator não-estatal e prevenir a proliferação dessas armas a outros Estados ou atores não-estatais. Mas para tornar possível esse objetivo, Obama deve enfrentar complexos desafios que demandam, principalmente, esforços cooperativos para criar instrumentos eficazes de governança global. Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da Conferência de Revisão do TNP em 2010: será importante oportunidade para os EUA renovar o comprometimento com o regime de não-proliferação e arquitetar soluções cooperativas com os demais países, em especial China, França, Reino Unido e Rússia – os demais detentores “lícitos” de armas atômicas.

Como resolver as crises regionais envolvendo o componente nuclear é quase tão difícil quanto solucionar as falhas do regime em si (do uso inapropriado da tecnologia nuclear ao desarmamento das grandes potências), percebe-se que não existe uma saída fácil para o problema da proliferação nuclear, pelo menos não num futuro próximo. Índia e Paquistão provaram isso em 1998, a Coréia do Norte provou em 2006 e em 2009 – todos demonstrando que no século XXI a política nuclear americana vai enfrentar grandes dificuldades até que se mostre capaz de liderar, por meio de arranjos cooperativos de governança global, um regime de não-proliferação sólido e funcional.



[2] FERGUSON, Charles D.; PERRY, William J.; SCOWCROFT, Brent (Organizadores). U.S. Nuclear Weapons Policy. Council on Foreign Relations, 2009.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: plano para o fim da Guerra do Iraque

por Diogo Ramos Coelho

Todos os Presidentes americanos sofrem grandes testes, e nestes testes a retórica política é deixada de lado e a verdadeira natureza dos líderes e da sua administração é revelada – foi assim com a crise dos mísseis cubanos para Kennedy, Vietnã para Johnson, Vietnã e Watergate para Nixon, a crise do reféns no Irã para Carter, o crescimento de Gorbachev e o escândalo Irã-Contras para Reagan, Guerra do Golfo para George H. Bush, desvios pessoais e os desafios da globalização para Clinton e o 11 de setembro para George W. Bush. Tudo indica que o Iraque será o grande teste de Obama.

No dia 04 de junho de 2009, Obama discursou na Universidade do Cairo com a intenção de renovar as relações dos EUA com o mundo islâmico. O discurso foi considerado uma iniciativa perspicaz e eloqüente. Por outro lado, analistas como Fareed Zakaria ressaltaram: as palavras do Presidente deverão ser confrontadas com as ações da política externa americana no Oriente Médio – e o único local onde Obama possui efetivo poder para colher bons resultados é o Iraque.

Os campos de atuação da diplomacia americana junto aos países árabes são diversos. No entanto, o poder dos EUA em garantir resultados favoráveis é limitado. A resolução do conflito entre israelenses e palestinos seria, certamente, grande marco para a renovação das relações entre EUA e o mundo islâmico. No entanto, os esforços para consolidar o processo de paz na Palestina vão além da vontade diplomática americana e dependem de diversos atores da região. Da mesma forma, a administração de Obama, ou qualquer outro ator externo, não conseguirá transformar o Egito em uma democracia nos próximos anos. Já as relações com o Irã tendem a seguir com os embates, uma vez consolidada a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad. Em contraposição, caso Obama consiga estabilizar as instituições iraquianas antes da retirada das tropas, o presidente ajudaria a modificar a dinâmica política no Oriente Médio e apresentaria um novo modelo de relacionamento externo com um país árabe, muçulmano e democrático.

O tempo é curto. Obama anunciou a retirada da maioria das tropas até o fim de agosto de 2010, com cerca de trinta e cinco a cinqüenta mil combatentes permanecendo até o fim de 2011, quando todas as tropas devem ser retiradas sob os termos do Acordo sobre o Status das Forças (SOF Agreement, na sigla em inglês), negociado pela administração de Bush.[1] O que precisa ser respondido é: sob quais condições as tropas americanas irão deixar o Iraque? Hoje, a situação no país mostra-se muito mais promissora que há três anos. O General David Petraeus conseguiu diminuir a violência ao utilizar mais soldados e ao lutar em frentes distintas: tanto no enfrentamento militar quanto na negociação com grupos sunitas que antes combatiam as tropas americanas. Isso permitiu ao General criar o que ele chamou de “breathing space” para a reconciliação política. O progresso político no Iraque mostrou-se, dessa forma, fundamental para a vitória militar. No entanto, as instituições iraquianas continuam frágeis. O país, marcado por divisões étnicas e sociais, carece de instrumentos de governabilidade.[2] Sem avanços no campo político que permitam aos curdos, sunitas e xiitas encontrar mecanismos pacíficos de resolução de controversas, uma vez que os EUA reduzam suas tropas, antigas desavenças e desconfianças poderão ressurgir, gerando mais violência e até uma trágica guerra civil. As conseqüências de um Iraque mergulhado no caos seriam terríveis para a estabilidade no Oriente Médio e para os interesses de segurança americanos: o país poderia cair no controle de militantes extremistas – agora mais fortes, depois de “derrotar” os EUA – além de tornar-se um local propício para o fortalecimento do terrorismo e fonte de expansão do poder do Irã e da Síria na região. Somente mecanismos genuínos de divisão do poder criarão um governo e um exército iraquiano vistos como representativos e não como sectários – condição fundamental para garantir a ordem e a estabilidade no país.

A principal consideração do governo americano sobre o plano de retirada do Iraque deve ser, portanto, a criação de instrumentos que garantam a governabilidade. Se o Iraque mergulhar em pequenos conflitos, com a possibilidade de escalada a uma guerra civil, enquanto os EUA retiram suas tropas, a administração de Obama será considerada responsável e terá que lidar com um quadro mais complexo e perigoso no Oriente Médio. Em contraste, uma ordem política estável mantida no Iraque terá relevante impacto no futuro do mundo árabe e na reputação americana. Caso se demonstre que curdos, sunitas e xiitas podem escrever seu próprio contrato social e mantê-lo com estabilidade, isso seria importante recurso estratégico para a promoção de diferentes políticas nos países islâmicos.

Os EUA devem, ainda, aumentar os esforços diplomáticos para levar os vizinhos do Iraque a maior envolvimento com o país. Ainda são poucos os governos árabes que mantém embaixadas em Bagdá. O Iraque não é uma ilha. É um dos fundadores da Liga Árabe e um país fundamental no Golfo Pérsico. A estabilidade do governo iraquiano também será decorrente do envolvimento diplomático com os países vizinhos, especialmente Irã e Síria – e os EUA desempenham um papel fundamental em garantir que essas relações sejam profícuas e viáveis.

É necessário, sobretudo, compreender que Iraque, Afeganistão e Paquistão são parte de uma mesma guerra – a guerra dentro dos países árabes e muçulmanos sobre como essa comunidade étnica e religiosa irá se adaptar ao mundo contemporâneo e ao conjunto de fatores que guiam nossa época: o reconhecimento do indivíduo como sujeito autônomo, a educação moderna, o dinamismo do capitalismo global, os direitos civis e políticos, a balança entre religião e Estado, os direitos da mulher, etc. Um resultado positivo no Iraque irá favorecer as forças progressivas ao criar algo que não existe hoje no Oriente Médio: um Estado árabe-muçulmano independente e democrático.

Uma democracia, claro, não se constrói em poucos dias. Porém, o presidente Obama e a Secretária de Estado Hillary Clinton não devem desprezar a capacidade de mediação dos EUA junto aos líderes locais. Para dar seguimento ao discurso proferido na Universidade do Cairo, Obama e Clinton devem concentrar esforços em desenvolver os mecanismos que possibilitem aprofundar o existente diálogo horizontal entre as comunidades iraquianas. A governabilidade no Iraque só será garantida por meio do ativo engajamento dos EUA. O objetivo, por fim, é criar os instrumentos que, respaldados pelos iraquianos, possibilitem construir uma democracia federal, funcional, com um judiciário independente, livre imprensa e com um governo central e um exército capazes de lidar com os diversos desafios que o país irá enfrentar nos próximos anos, quando se ver livre da interferência militar estrangeira.



[1] ZAKARIA, Fareed. Victory in Iraq (2009). Disponível em: http://www.newsweek.com/id/200858/page/1. Acesso em 16 de junho de 2009.

[2] FRIEDMAN, Thomas L. The Iraq Obama inherits (2008). Disponível em: http://www.nytimes.com/2008/11/30/opinion/30iht-edfriedman.1.18258195.html?_r=1. Acesso em: 16 de junho de 2009.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Comentários sobre o filme “Intrigas de Estado”

O filme “Intrigas de Estado”, sem dúvida, tem um forte elenco e um roteiro excelente, que explora formidavelmente as ligações entre os mundos da política e do jornalismo na capital americana. Entretanto, está no fundo da trama principal do filme o que mais nos interessa: a incrível e lucrativa expansão das empresas privadas de segurança (em inglês, Private Military Companies (PMCs) ou Private Security Companies (PSCs)).

O personagem principal coordena um comitê no Congresso americano responsável por investigar a atuação destas empresas e suas possíveis irregularidades. A principal destas empresas, PointCorp, estaria lucrando centenas de milhões (ou talvez bilhões) por serviços prestados ao Departamento de Estado e ao Departamento de Segurança Nacional, como apoio logístico na Guerra do Iraque e treinamento de pessoal nos Estados Unidos.

Alguns podem achar que isto não passa de uma ficção, assim como boa parte do filme. No entanto, muitas semelhanças podem ser identificadas com a realidade. Esta empresa fictícia parece ser uma clara alusão à Blackwater, grande empresa privada de segurança com contratos milionários para atuação no Iraque junto às tropas americanas e envolvida em escândalos de morte de civis iraquianos inocentes. O caso Blackwater foi a ponta do iceberg que trouxe muita atenção da academia e da mídia internacional para assunto das PMCs/PSCs.

Mesmo que não haja uma intencional ligação com esta empresa em particular, a PointCorp apresenta as principais características de uma grande empresa privada de segurança da atualidade. É composta em sua maioria de ex-militares com excelente formação. Presta variados serviços militares ao governo americano em diversas partes do planeta, desde treinamento de militares e operações de logística até proteção de autoridades, agentes humanitários e prédios em zonas de alta insegurança. Apresenta um sólido crescimento nos últimos anos. Participa de uma associação de PMCs/PSCs para fazer lobby junto ao Congresso e à sociedade americanos. A essência de suas ações é semelhante à dos mercenários, muito comuns atualmente nos conflitos africanos, mas o nível de profissionalismo e eficiência é incomparável.

Por outro lado, é preciso ficar atento para alguns exageros e incongruências com a realidade. Por exemplo, o filme aponta o fato de que todos os funcionários da PointCorp são ex-militares americanos, mas, na realidade, a maior parte destas empresas contrata também uma boa parte de seu pessoal de países em desenvolvimento para abaixar seus custos e burlar questões legais. Além disso, não é mencionado um dos pontos mais polêmicos em relação a estas empresas: a ausência de um status legal para elas. Isto é uma das principais causas para a baixa transparência e responsabilidade deste crescente ramo de negócios.

Para aqueles que se interessaram nesta breve descrição das companhias privadas de segurança, não deixem de buscar mais leituras na Internet e de assistir ao filme.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: nova estratégia para o Paquistão e Afeganistão

por Diogo Ramos Coelho

A guerra do ocidente no Afeganistão, iniciada em 2001, não poderá ser vencida se lutada apenas dentro das fronteiras desse país. Essa constatação é amplamente acatada e culminou, no dia 27 de março de 2009, com o anúncio do governo Obama da estratégia conhecida como AfPak (Afeganistão e Paquistão).

A Guerra contra o Terror empreendida por George W. Bush em terras afegãs forçou a retirada de diversos grupos fundamentalistas – principalmente membros da rede Al Qaeda e do Talibã – para as regiões tribais montanhosas na fronteira paquistanesa, onde puderam reconstituir-se e dar retorno a suas atividades. Essas áreas consistem de sete partes chamas “agências”: Bajaur, Mohmand, Khyber, Orakzai, Kurram e o Waziristan do Norte e do Sul.[1] Islamabad possui historicamente baixo controle sobre essas regiões. Por serem “semi-autônomas”, ofereceram refúgio às milícias afegãs e paquistanesas.  O quadro de insegurança é ainda agravado pela instabilidade política, pela fragilidade das instituições e pelas profundas divisões étnicas que marcam os dois países.

O Paquistão é um Estado de governabilidade fragmentada. Desde a independência em 1947, o regime político no país alternou-se entre governos democráticos instáveis e governos militares. Os militantes islâmicos também são agentes poderosos, posicionando-se algumas vezes ao lado do governo central – como no caso dos jihadis recrutados e treinados para lutar nas guerras da Caxemira e no Afeganistão – e outras contra o governo – como os militantes que lutam hoje contra as forças de segurança paquistanesa. Já o governo afegão de Hamid Karzai, apesar de desfrutar da ajuda, financiamento e treinamento dos militares americanos, ainda não desenvolveu capacidade de garantir o controle de diversas regiões do país.

Nos últimos dois anos, o já instável ambiente de segurança no Afeganistão e no Paquistão tornou-se ainda pior. O aumento do número de milícias ligadas à Al-Qaeda, ao Talibã de Mullah Omar ou Baitullah Mehsud, assim como o aumento de narcotraficantes, de extremistas sectários, entre outros, foram fatores de forte desestabilização das regiões sul e leste do Afeganistão e do Paquistão Ocidental.[2] Ao mesmo tempo, grupos como os extremistas anti-indianos Punjabi e warlords (“senhores de guerra”) da Ásia Central intensificaram suas ações em outras regiões dos dois países. Esse cenário de insegurança é agravado principalmente pelo fato do Estado paquistanês ser um Estado nuclear. As armas nucleares foram desenvolvidas como mecanismos de containment ao avanço nuclear indiano. Hoje, a possibilidade dessas armas caírem nas mãos de militantes e serem usadas contra países no ocidente ou contra o próprio Estado paquistanês configura como imenso – e intolerável – risco.

Instituições frágeis, lideranças fracas e recursos inadequados limitam a capacidade de Cabul e Islamabad combaterem a militância violenta a longo prazo. Nesse sentido, a cooperação americana com os dois governos é vital: seja para a garantir segurança dos EUA, mudar os rumos no combate ao terrorismo ou assegurar a estabilidade na região. De acordo com a Casa Branca, o objetivo fundamental da nova política americana no Paquistão e no Afeganistão é combater os militantes que oferecem “safe havens” para fundamentalistas e construir estruturas de segurança que aumentem a eficácia das ações locais antiterroristas e contra os insurgentes. A injeção de recursos dos EUA serviria para desestabilizar o Talibã e membros da Al Qaeda e, assim, oferecer espaço para a ação dos governos em Islamabad e Cabul.

Os dois principais elementos do AfPak, portanto, são: 1) a abordagem regional: o presidente americano irá tratar o Afeganistão e Paquistão como dos países, mas como único desafio. A ênfase maior será no Paquistão: aumento da presença militar americana, auxílio econômico e no treinamento e capacitação das forças de segurança locais. A estratégia também envolve contato com outros atores e países na região, entre os quais destacam-se Índia, Rússia e China; e 2) a expansão dos recursos no combate ao terrorismo: a estratégia foca não apenas o combate militar e as capacidades de defesa, mas também inclui investimentos financeiros nas economias paquistanesa e afegã, recursos diplomáticos, incentivos ao desenvolvimento e construção de mecanismos eficazes de governança e fortalecimento institucional.

As principais mudanças com o AfPak não são somente no campo estratégico. Há mudanças na percepção americana em relação ao combate à violência fragmentada. O poder militar, apesar de importante, possui cada vez menos peso, seja no combate às milícias imersas entre a população civil, seja como fator de estabilização dos laços de interdependência entre os países afetados pelo terrorismo. Desestabilizar os terroristas requer o envolvimento de governos, organizações e instituições – regionais e locais – os quais possam oferecer respostas aos desafios da instabilidade política e econômica. A retórica de promoção da democracia do governo Bush cede lugar à necessidade de fornecer assistência e ajuda financeira para fortalecer a governabilidade em países caracterizados por Estados falidos.

A complexidade dos objetivos da estratégia pode ser sua maior falha. Construir governos moderados, estáveis e eficientes em Islamabad e Cabul, além de combater tensões regionais de longas datas, são causas admiráveis, mas que requerem investimentos a longo prazo – e é possível que os únicos resultados obtidos com esses investimentos sejam dividendos altos e precários. Resolver problemas históricos como o sectarismo, instabilidade política, fragmentação da violência e divisões étnicas requer a mobilização de diversos recursos, mudanças no jogo de interesses na região e reformas institucionais – além de outros fatores que transcendem a simples vontade de um governo. Ainda, os EUA, efetivamente, possuem baixo interesse na região – e mesmo um Paquistão e um Afeganistão estáveis e viáveis economicamente permaneceriam pobres e com baixa relevância para as considerações militares ou econômicas de Washington. Nesse sentido, pode-se argumentar que a estratégia anunciada pela administração de Obama é demasiadamente onerosa e abrangente para combater uma ameaça estritamente definida: a Al Qaeda e o Talibã. O foco da parceria dos EUA com o Afeganistão e o Paquistão (assim com outros atores na região), portanto, deveria voltar-se e intensificar-se nos grupos terroristas, na ajuda às forças de inteligência capazes de detectar e combater esses grupos, e não em aspirações gerais de restabelecimento da ordem e da estabilidade nos dois países.

Por outro lado, restringir o foco da estratégia de Washington representaria uma falsa economia de recursos, enquanto criaria maiores ameaças aos interesses de segurança americanos. O cerne do problema é o Paquistão, onde menos recursos foram gastos (se comparado ao Afeganistão pós-11 de setembro), onde a presença americana é menor, onde a atual conjuntura converge para o aumento do fundamentalismo e onde a confiança em Washington é extremamente debilitada. Se as tendências de “talibanização” das regiões semi-autônomas paquistanesas persistirem e avançarem, a próxima geração de terroristas irá nascer e ser treinada em um Paquistão frágil, dividido, violento e nuclear. O fortalecimento das instituições paquistanesas se mostra extremamente necessário como meio para assegurar a cooperação bilateral e no combate aos militantes extremistas a longo prazo.

Erradicar totalmente o terrorismo passa, cada vez mais, a ser entendido como uma meta irreal e ilusória. Cabe tentar erradicar as causas que fortalecem a militância violenta. Além do confronto armado, o combate à violência fragmentada passa pelo combate aos fatores estruturais que permitem o fortalecimento dos grupos extremistas. Hoje, o Paquistão é o local cuja conjuntura fornece os principais incentivos para a propagação do terrorismo. E é um Estado nuclear. Retrair a expansão dos recursos de assistência às instituições no país, enquanto Islamabad e Washington permanecem aliados, seria um erro estratégico. A principal transformação na estratégia do governo Obama deveria ser sair do AfPak para um PakAf.



[1] Council on Foreign Relations. Disponível em: http://www.cfr.org/publication/11973/. Acesso em: 04 de junho de 2009.

[2] MARKEY, Daniel. From AfPak to PakAf: A Response to the New U.S. Strategy for South Asia. Council on Foreign Relations. Fevereiro, 2009.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: o Fechamento da prisão em Guantánamo e proibição do uso da tortura

por Diogo Ramos Coelho


Ninguém irá ouvir o Presidente Barack Obama pronunciar as palavras “guerra ao terror”. As decisões de fechar a prisão de Guantánamo, proibir o uso da tortura, rever as políticas americanas de interrogatório e reafirmar o respeito às Convenções de Genebra e à Convenção Contra a Tortura demonstram o início da reversão das principais políticas de segurança nacional de George W. Bush, desde 2002.

A política de defesa e de segurança de um país está enquadrada em um campo estratégico de combate a ameaças existenciais (ameaças, por exemplo, à existência de um Estado, aos princípios constitutivos de um sistema político, à estabilidade econômica ou aos recursos naturais de sustento de uma sociedade). Essas políticas de defesa e segurança requerem a utilização de medidas e poderes excepcionais, com o objetivo de eliminar as ameaças que enfrentam. Nesse sentido, no dia 18 de setembro de 2001, uma resolução do Congresso americano autorizou o Presidente Bush a utilizar “todas as forças necessárias e apropriadas” para combater os países, as organizações ou as pessoas, por ele designadas, que promovessem atividades terroristas.

Desde o fim da Guerra Fria, o sistema político americano tem oscilado no apoio ao direito internacional e às instituições internacionais como instrumentos capazes de promover a segurança do país. Os EUA se estabeleceram, no século XX, como o principal guardião da ordem no sistema internacional; entretanto, em diversas ocasiões, negou-se a respeitar essas regras. Depois do 11 de setembro, as estratégias de combate ao terrorismo do governo Bush envolveram alto grau de “autonomia” dos EUA perante as prescrições do direito internacional. As ações unilaterais no Iraque, Abu Ghraib, tortura e a retórica da promoção da democracia com a Guerra do Iraque acabaram por comprometer a credibilidade americana no mundo.

Hoje, as principais ameaças à segurança global – a proliferação de armas nucleares, a mudança climática, o terrorismo, os conflitos, a pobreza, as epidemias e a instabilidade econômica – não são constrangidas por fronteiras nacionais. As respostas a essas ameaças demandam maiores níveis de cooperação e mecanismos de governança global. Nesse contexto, os EUA desempenham papel de destaque: nenhum outro Estado possui a capacidade diplomática, política e econômica necessária para renovar a cooperação entre as principais potências do mundo. Porém, para liderar, os EUA precisam primeiro renovar seu comprometimento com a ordem internacional.

Desde que iniciou as operações em 2001, imagens de tortura, denúncias de maus tratos e incertezas jurídicas tornaram a prisão militar da Baia de Guantánamo, em Cuba, símbolo da falta de comprometimento dos EUA com o sistema de direito internacional. Em quase oito anos de existência, aproximadamente 800 indivíduos – designados, ou tratados como, combatentes inimigos pelo Departamento de Defesa americano – estiveram detidos na base militar. O governo federal transferiu mais de 500 desses indivíduos para seus países de origem, ou para outro país, ou simplesmente os colocou em liberdade. Atualmente, a prisão detém cerca de 240 pessoas suspeitas de vínculos com o terrorismo.

No dia 22 de Janeiro de 2009, Obama divulgou uma ordem executiva determinando o fechamento da prisão militar em Guantánamo. No documento, o presidente afirma que:

In view of the significant concerns raised by these detentions, both within the United States and internationally, prompt and appropriate disposition of the individuals currently detained at Guantánamo and closure of the facilities in which they are detained would further the national security and foreign policy interests of the United States and the interests of justice.”

O fechamento da prisão, a proibição do uso da tortura, a revisão da política de interrogatório e a reafirmação do  respeito às Convenções de Genebra e à Convenção Contra a Tortura podem ser interpretados como sinais do governo Obama para novo engajamento dos EUA com o sistema de ordem internacional. Há a percepção de que a segurança nacional tornou-se interdependente com a segurança global. A globalização criou laços de interdependência que não favorecem o militarismo ou ações unilaterais. Para combater ameaças globais, deve-se articular respostas também globais. É nesse sentido que o fechamento de Guantánamo e a proibição do uso da tortura convergem com os interesses de segurança americanos: a restauração da confiança no papel dos EUA como principal articulador de ações coletivas.

No campo do discurso, as intenções do governo americano apontam no caminho correto. Entretanto, ao discutir política, cabe sempre lembrar: uma decisão tomada não é necessariamente uma ação cumprida. Transformar o discurso em realidade é algo complicado – e que demanda múltiplos esforços. Nesse sentido, em relação a Guantánamo, a administração de Obama encontra dificuldades em traçar um plano sobre o destino dos detentos remanescentes na prisão militar. Os esforços para transferir aqueles que são considerados menos perigosos para outros países – onde não representem uma ameaça à segurança e onde também não sofram abusos – esbarra na falta de governos dispostos a colaborar. Ainda, é incerto como se dará o processo de julgamento contra aqueles evidentemente envolvidos com práticas terroristas. Essas incertezas culminaram com a não-aprovação no Congresso americano, no dia 20 de maio de 2009, dos fundos pedidos pelo executivo para por em prática o processo de fechamento da prisão. Faltavam detalhes, alegou-se.

O argumento moral para o fechamento de Guantánamo e para a proibição do uso da tortura permanece inatacável. Mais que isso: alia-se pragmaticamente à restauração do papel dos EUA como o principal articulador de políticas cooperativas. No entanto, uma esperança vaga e virtuosa do novo compromisso dos EUA com a ordem internacional pode soar um pouco vazia diante dos limites impostos pela realidade política – e diante da constatação de que as medidas adotadas pelo governo Bush nos tempos do 11 de setembro pareciam justificáveis, tanto para os democratas quanto para os republicanos.  

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Desafi(n)ando a Doutrina Bush

De volta aos anos 90, com o fim do mandato de Bill Clinton, assistiu-se a uma mudança radical nas orientações da política externa norte-americana. O democrata havia simbolizado, durante os oito anos que ocupou a cadeira de presidente da maior potência global, a possibilidade de utilização de ferramentas econômicas e multilaterais para garantir a primariza dos Estados Unidos da América (EUA) no cenário internacional, agora livre do embate Leste-Oeste. No caminho inverso, seu sucessor, George W. Bush, apostou na busca pelo mesmo objetivo por meios militares e unilaterais.
Nesse cenário, o governo do republicano erigiu, após os atentados de 11 de setembro, a Doutrina Bush, eixo paradigmático que sustentaria, até o final do governo em 2008, a política externa da potência. Em matéria de segurança, essa trazia, em linhas gerais, a importância do combate ao terrorismo – da mesma forma que a qualquer outra instituição que apoiasse atividades dessa natureza –, e, também, a ampliação dos poderes do Estado de intervir e investigar qualquer suspeita de atividade terrorista, inclusive entre os próprios norte-americanos natos – diluindo, assim, direitos constitucionais que antes prezavam pelo respeito à privacidade dos indivíduos. A Doutrina Bush, que é encarnada na National Security Strategy de 2002, estava envolvida em uma intensa retórica que freqüentemente associava signos como liberdade e democracia às questões de segurança não só dos EUA, mas como de todo o sistema de Estados. Nesse âmbito, a Doutrina Bush parece retomar algo da filosofia kantiana, presente em A Paz Perpétua: a simples assertiva de que o mundo democrático é o mundo da paz – dado que povos (que em sistemas democráticos governam suas nações) nunca querem a guerra.
Para além disso, um dos vieses mais significativos para a configuração de alguns temas da política internacional contemporânea parece ter sido o projeto de promoção da democracia empreendido pelos EUA, sustentado pela arrogância republicana presente no governo e pela própria Doutrina Bush. A análise dos discursos presidenciais e dos Secretários de Estado durante os oito anos em que George W. Bush permaneceu em Washington, evidenciam a direta relação que havia, no entendimento (ou no interesse) deles, entre democracia e segurança, para os EUA e para o mundo.
Às vésperas das eleições para a cadeira de presidente, no Irã, a maior democracia do mundo islâmico, o debate acerca da política externa desse país permanece quente entre os candidatos e eleitores. O atual presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, deu início a um ambicioso projeto nuclear no país, sob a retórica de que esse teria apenas fins pacíficos. Apesar das divergências, parece não haver mais dúvidas que o Irã busca se armar com ogivas nucleares, pelo menos aos olhos de Washington. De qualquer forma, cabe o questionamento acerca do alcance explicativo do paradigma mais evocado pela administração republicana, findada em 2008, da Doutrina Bush: o de que democracias não lutam entre si, e que, além disso, cultivando o sistema democrático pelo mundo a fora, colheremos nações totalmente desinteressadas em se armarem para estarem prontas a causar uma brecha na paz.
A reflexão concernente a esse tema específico nos faz elucidar pelo menos dois questionamentos que não devem (ou não deveriam) ser deixados de lado. Associar a existência do modelo democracia com a garantia de segurança internacional, pelo menos no caso do Irã, parece não ser uma teoria que se aplique a todos os casos. Nesse sentido, se não podemos tratá-la como uma teoria, ainda resta a esse raciocínio da Doutrina Bush servir simplesmente como retórica, como por várias vezes os EUA têm tratado seu discurso em política externa. Em segundo lugar, ascende a reflexão de que a democracia é um sistema político que dá margem a uma flexibilidade, possibilitando a transfiguração de vontades, ideologias e interesses “nacionais” em políticas públicas. Por esse motivo, não é dada a garantia de democracias estarão sempre desinteressadas empreender guerras (ou, que seja, ameaças) umas às outras.
O futuro ainda reserva algumas respostas – mesmo que não definitivas, sequer completas, como desejaríamos. A primeira delas deve ser buscada nos resultados das eleições iranianas, no sentido de compreender melhor qual será a demanda e o interesse nacional em matéria de política externa (bem como uma plausível avaliação do governo de Ahmadinejad). Do outro lado do muro, deve-se atentar para os novos caminhos da política externa norte-americana. Ainda é cedo para tentar esboçar qualquer tipo-ideal que categorizaria o projeto de inserção internacional formulado por Obama e sua equipe. De qualquer forma, alguns elementos da nova administração democrata já podem ser percebidos, dentre eles a visível mudança no tom discursivo do presidente (evidenciado pela disposição a reativar canais de diálogo antes interrompidos com outras nações), a mudança na estratégia militar no Afeganistão e no Iraque, e, mais importante ainda, a utilização da diplomacia para apresentar e construir a nova inserção dos EUA no mundo.


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Refrerências

CASTRO SANTOS, M. H. ; YASSINE, A. . Exporting Democracy: Kantian Peace or Western Hegemony Expression?. In: 49th International Studies Association Annual Convention, 2008, San Francisco.

CASTRO SANTOS, M. H. . Exportação de democracia na política externa norte-americana: idéias, doutrinas e o uso da força. Revista Brasileira de Política Internacional, 2009.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos.Edições 70, 2008.

THE WHITE HOUSE. The National Security Strategy of the United States of America. Washington, 2002. Disponível em: http://merln.ndu.edu/whitepapers/USnss2002.pdf

VÁRIOS. The War on Terror and the American ‘Empire’ After the Cold War. Editado por: Alejandro Colás & Richard Saull. Routledge, 2005.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Convite: CONFLITOS EM DEBATE

Perspectiva Histórica das Relações Brasil - Cuba

José Joaquim G. da Costa Filho
O Ministro Celso Amorim chega à Assembléia Geral da OEA em Honduras, nos dias 02 e 03 de junho de 2009, defendendo um “enterro o mais burocrático possível” da decisão tomada pela organização em 1962, excluindo o governo de Cuba de participar de suas atividades. Ainda segundo o chanceler, esta decisão seria uma relíquia da Guerra Fria e, como não faz mais sentido falar em uma ameaça ideológica vinda da ilha caribenha, é preciso e possível anular a resolução de 1962. A reintegração do regime cubano à OEA seria outra questão. Para entender melhor esta posição do Ministro das Relações Exteriores Brasileiro, é essencial recorrer a um histórico das relações entre Brasil e Cuba.

Breve Histórico das Relações Brasil – Cuba desde 1959

Após a Revolução de 1959 em Cuba, o Brasil manteve uma posição de respeito em relação ao governo de Fidel Castro, baseada nos princípios de não-intervenção e autodeterminação. Este posicionamento não foi alterado nem mesmo com a frustrada tentativa norte-americana de invadir a Baía dos Porcos, em relação a qual o governo Quadros manifestou “profunda apreensão”. Ainda durante este governo, Che Guevara recebeu do presidente brasileiro a Ordem do Cruzeiro do Sul. Este ato gerou forte oposição doméstica a Quadros.

Em seguida, já durante o governo Goulart, o Brasil defendeu uma posição conciliadora durante a VIII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores da OEA, ocorrida em Punta del Este em janeiro de 1962. San Tiago Dantas propunha, por um lado, o respeito ao princípio de não-intervenção e, por outro lado, a neutralização do regime cubano por meio de um estatuto que regulasse as suas relações com o restante da América. A proposta brasileira não foi acolhida pelos demais países (nem por forças políticas internas), mas mesmo assim o chanceler se sentiu vitorioso pelo que não se aprovou em Punta del Este, como uma ofensiva militar ou sanções mais duras, e pelo reconhecimento que reivindicações sindicais não deveriam ser confundidas com movimento comunista.

A ata final da VIII Reunião de Consulta, dentre outras coisas: a) reconheceu e repudiou a ofensiva comunista na América; b) excluiu o governo de Cuba da participação no sistema interamericano, bem como da Junta Interamericana de Defesa (isto não significa a expulsão do país da OEA, apenas a exclusão de seu governo comunista); c) e suspendeu imediatamente o comércio e o tráfico de armas e material de guerra de todo gênero com Cuba. Os votos do Brasil, Argentina, México, Chile, Equador e Bolívia foram de abstenção.

O rompimento das relações diplomáticas com Cuba ocorreu no dia 13 de maio de 1964 durante o governo Castello Branco (1964-1967), primeiro presidente militar depois do golpe de 1964. Esta ruptura foi um reflexo da pressão doméstica das forças militares, pró-americanas e de direita, engajadas na eliminação de quaisquer atritos com os Estados Unidos, embora houvesse resistência do Itamaraty. Este ato foi acompanhado de uma acusação oficial de que Cuba estaria interferindo em assuntos internos por meio de uma aliança com grupos marxistas brasileiros. A justificativa para esta decisão foi baseada em argumentos ideológicos, a escolha marxista cubana teria excluído o país do “hemisfério livre”, e práticos, a comprovação do desembarque de armas provenientes da ilha na Venezuela.

Além disso, o Brasil aplicou as sanções previstas pelo artigo 8 do Tratado do Rio de Janeiro, apesar de ter se oposto a qualquer ação militar contra o regime de Castro, como previsto neste mesmo acordo. Dessa forma, o Brasil colaborou com a estratégia americana de isolamento de Cuba. Esta posição perdurou por todos os governos militares, inclusive durante a vigência do Pragmatismo Responsável de Geisel.

Durante o governo Figueiredo (1979-1985), foram dados os primeiros passos para a normalização das relações com Cuba. No entanto, estes foram passos lentos, pois ainda havia forte oposição a esta mudança dentro do Conselho de Segurança Nacional e do Congresso. Entre 11 e 15 de janeiro de 1982, ocorreu a primeira missão empresarial brasileira, chefiada pelo empresário Ruy Barreto, a visitar Cuba desde o rompimento de relações em 1964.

Após o restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e Cuba, ocorrido durante o governo Sarney, as relações políticas e econômicas têm crescido nas duas últimas décadas. Grande impulso tem sido dado pelo governo Lula (2002-2010), que possui afinidades ideológicas com o regime de Raul Castro, irmão de Fidel Castro. No ano de 2006, por exemplo, o Brasil exportou US$ 343,25 milhões (os principais produtos foram açúcar, frango, café, carne bovina e produtos eletroeletrônicos) e importou US$ 31,59 milhões (os principais produtos foram materiais médicos, níquel, charutos e rum) de Cuba.

Bibliografia:
Cervo, Amado L. & Bueno, Clodoaldo (2002). História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
Reportagem “Amorim defende ‘enterro burocrático’ do caso Cuba”. Folha de São Paulo (jornal impresso), 01/06/09.
Reportagem “Comércio entre Brasil e Cuba bate recorde e atinge quase US$ 400 milhões”. Agência Brasil (jornal online), 07/03/07.
Vizentini, Paulo Fagundes (1998). A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Editora da Univ. Fed. Do Rio Grande do Sul.

domingo, 31 de maio de 2009

Clipping de Notícias da América do Sul

24 a 30 de maio de 2009

América Latina
Las armas ilegales desangran Latinoamérica, El Pais, 25/05/09.

Bolivia
Bolivia and Venezuela Deny Report, The Intimes, 26/05/09.

Chile
Bachelet acuerda la compra a Holanda de 18 aviones F16, El Pais., 27/05/09.

Colômbia
The Virtuous Twins: Protecting Human Rights and Improving Security in Colombia, Latin
America Briefing No 21, International Crisis Group, 25/05/09.

Venezuela
Chávez pide ayuda a Lula ante la crisis, El Pais, 26/05/09.

sábado, 30 de maio de 2009

“O Último Rei da Escócia” e o direito internacional – Parte II: a não-intervenção

Por Denise Galvão

Quanto à não-intervenção internacional, há dois casos durante o governo Idi Amin, um dos quais aparece no filme “O último rei da Escócia” (The Last King of Scotland, Reino Unido, 2006).
O primeiro trata da intervenção militar israelense para resgatar seus cidadãos, reféns do seqüestro do avião da Air France, que voava de Israel para Paris, com 250 pessoas a bordo, por sete militantes palestinos, em 27 de junho de 1976. Amin deu proteção aos seqüestradores, que desviaram o vôo para pousar Entebbe, na cercania de Kampala. Os palestinos pretendiam trocar a liberdade dos reféns pela de 53 militantes presos em Israel e outros países. Em 1 de julho, os reféns não-judeus foram liberados, como mostra o filme. Para resgatar seus 100 cidadãos no aeroporto, Israel realizou uma operação militar, em 4 de julho, quando três aviões com 200 militares de elite atacaram. De 20 a 40 soldados ugandenses e todos os seqüestradores, além de três reféns e do comandante militar israelense, foram mortos na operação. Dois aviões Boeing 707 fizeram o transporte dos reféns.1
Israel alegou que o direito internacional permitia recorrer à força para proteger cidadãos nacionais no exterior quando o país onde corriam perigo não se mostrasse capaz ou disposto a fazê-lo. Dois projetos de resolução foram apresentados no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O primeiro, redigido pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, condenava o seqüestro e exortava os países-membros a preveni e punir todo ataque terrorista dessa natureza. Esta resolução foi levada a votação, mas não obteve os nove votos necessários, no total de 15. [...]
O segundo projeto de resolução, apresentado por Benin, Líbia e Tanzânia, condenava a violação da soberania e da integridade territorial de Uganda, exigindo que Israel pagasse indenizações por todos os danos causados. A resolução sequer chegou a ser levada a votação. A reação dos países que não integravam o Conselho de Segurança também foi de confusão e reserva, indicando a generalizada aceitação tácita da alegação israelense.2
Para Michael Byers, o incidente de Entebbe representa contribuição para uma relativa extensão do direito de legítima defesa nas relações internacionais, passando a incluir a proteção de nacionais no exterior, desde que condicionado aos critérios de necessidade e proporcionalidade do uso da força militar.
O segundo caso, que marca o fim do governo de Idi Amin, é a intervenção militar da Tanzânia contra Uganda, após os ataques de Amin ao território tanzaniano, em 1978. Exilados políticos ugandenses e tropas tanzanianas invadiram Uganda, com apoio militar da Líbia, derrubando Amin e forçando-o ao exílio, em 1979. O presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, proveu apoio militar ao novo governo em Kampala – que restabeleceu Obote no poder –, e manteve suas tropas ocupando o país vizinho por cerca de dois anos e meio.
A Tanzânia alegou que a intervenção em Uganda consistiu em uma ação de autodefesa, em face da agressão de Uganda, cujas tropas tentaram anexar parte do território da Tanzânia. Nesse caso, pode-se contestar a proporcionalidade do uso da força pela Tanzânia, em relação ao objetivo da legítima defesa, pois a ação passou de defensiva para ofensiva, e de invasão para ocupação duradoura. A norma da não-intervenção admite a exceção da autodefesa ante um ataque armado, segundo os critérios da necessidade e da proporcionalidade. A maioria dos países aceitou a alegação tanzaniana, quase sempre em caráter tácito. A Assembléia Geral concedeu credenciais ao novo governo de Uganda menos de seis meses depois da derrubada de Amin, o que demonstra o reconhecimento internacional.
Amin fugiu para a Líbia, em seguida para o Iraque e para a Arábia Saudita, onde faleceu em 2003, aos 80 anos.

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Notas:
1 Cf.: “1976: Israelis rescue Entebbe hostages”. BBC News. Disponível em: Acesso em: 24/05/2009.
2 BYERS, Michael. A lei da guerra: direito internacional e conflito armado. Rio de Janeiro: Record, 2007. pp. 76-77.

domingo, 24 de maio de 2009

“O Último Rei da Escócia” e o direito internacional – Parte I: os direitos humanos

Por Denise Galvão

O filme Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland, Reino Unido, 2006, dirigido por Kevin Macdonald), exibe um enredo inspirado em fatos da história social e política de Uganda, localizado na região dos Grandes Lagos, na África, entre 1971 e 1976. O personagem principal é Idi Amin (interpretação premiado por Oscar de Forest Whitaker), um dos ditadores que lideraram recém-estabelecidos Estados africanos durante o período da ordem internacional bipolar.
Amin ascendeu ao poder por meio de um golpe de Estado, contra o governo militar antecessor (Milton Obote, 1966-1971), de que já participara, como chefe de Exército. O governo Amin suscita algumas questões relacionadas a princípios do direito internacional: a promoção dos direitos individuais fundamentais e a não-intervenção nos assuntos internos dos Estados.
“O último rei da Escócia” evidencia variadas violações de direitos humanos – políticos, civis, sociais, econômicos, culturais –, tanto por ação, como por omissão do poder público.
Uganda só aderiu o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, em 1995. Enquanto isso, durante o governo Amin, muitos direitos sequer eram reconhecidos pelas leis nacionais e não havia garantia de que se alguém sofresse violações teria remédio efetivo, a partir do acesso à justiça.
O governo não respeitava a liberdade de opinião e praticava perseguição política de seus opositores, com truculência. Aos suspeitos de participação na oposição, era negado o direito à vida e à proteção judicial, sendo arbitrariamente privados da vida. Estima-se que entre 100 mil e 300 mil ugandenses tenham sido torturados e mortos durante sob a liderança carismática de Amin.
Além disso, pelo caráter ditatorial do governo, aos cidadãos era negado o direito a participar da vida política do país. O judiciário não era imparcial, como ilustra a menção ao desaparecimento forçado de um juiz da Corte Suprema que havia realizado um voto contrário aos interesses do presidente. Aos indivíduos associados a Obote não era assegurado julgamento segundo as normas do devido processo legal.
À mulheres não eram assegurados direitos iguais aos dos homens, como demonstra a prática da poligamia masculina. Indivíduos eram discriminados por sua nacionalidade, ao determinar a expulsão das pessoas de origem em países asiáticos de Uganda.
Em relação ao médico escocês do filme, Dr. Nicholas Garrigan, pode-se observar desrespeito a direitos de um indivíduo fora do seu Estado de nacionalidade. Ao intencionar partir de Uganda, Nicholas foi impedido de deixar o país, para retornar ao seu país de origem. Sua privacidade foi violada, e ele foi privado do porte de seu documento de viagem – o passaporte. Adicionalmente, sofreu tortura.
Já o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, foi objeto de adesão de Uganda em 1987. Portanto, na época de Amin, Uganda ainda também não tinha responsabilidade internacional por garantir esses direitos. Assim, a satisfação dos direitos básicos a alimentação, vestuário e moradia era muito desigual, entre a capital Kampala e as vilas no interior, entre as pessoas ligadas ao governo e o resto da população.
Devido ao patrimonialismo imperante no governo Amin, o governo ugandense não desempenhava as medidas necessárias para progressivamente, na medida dos recursos disponíveis, realizar esses direitos, sem discriminação. Por exemplo, em relação ao hospital Mulago, que havia sido o mais bem equipado da África Subsaariana à época de sua inauguração, em 1962, os descuidos e as falhas gerenciais levaram-no ao caos, em 1980.1

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Notas:
1 “African apocalypse”.
New York Times (Late Edition - East Coast). New York, N.Y.: Nov 16, 1980. pg. A.77.