quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Era das Revoluções Legitimadas e a Garantia dos Direitos Civis

Por Amena Yassine*


É parte do processo revolucionário o retorno ao equilíbrio. Hannah Arendt observa que o próprio termo revolução indicava, em sua origem, momento de regresso ao estado de harmonia. Foi a Revolução Francesa a introdutora do significado de “ruptura” ao vocábulo, que, mais tarde, adquiriu o traço de “turbulência permanente” em função da intenção bolchevique de formar ativistas comprometidos a levar incansavelmente a Revolução de Outubro por todo o mundo. A experiência histórica – da Bastilha à Comuna de Paris e das massas de Petrogrado ao Muro de Berlim – revela, contudo, que a revolução contínua é contraproducente, pois intercala períodos de ingovernabilidade, autoritarismo e desrespeito aos direitos e garantias fundamentais. O homem revolucionário contemporâneo percebe que a tolerância e o debate – inclusive com a oposição – é menos um conluio entre classes sociais que uma posição política cujos fins maiores são o ser humano, seu progresso e evolução.
O argumento da existência de maquinação entre revolucionários e o “establishment” anterior a eles fundamenta a necessidade de revoluções ininterruptas, que, na França, fizeram alternar no poder girondinos, jacobinos, napoleões, bourbons e oranges. Eram governos ou de republicanos, ou de oligarcas, ou de monarquistas, ou de imperialistas. A primeira fraqueza dessas revoluções reside no fato de elas reduzirem os interesses nacionais a projetos políticos excludentes e parciais. Decorrente desta, a limitação seguinte é a perda de um dos objetivos fundamentais dos Estados em geral: a preservação do indivíduo. A rigor, são características comuns às administrações revolucionárias dos dois últimos séculos a subjugação de grupos étnicos e, entre outras, a intransigência religiosa, política e cultural. Um sem-número de exemplos históricos consubstanciam a observação alvitrada, basta lembrar da ex-Iuguslávia, do Irã, da ex-União Soviética.
É tendência das atuais democracias ocidentais a articulação política entre governantes e os vários setores de sua sociedade. Sobremaneira após o declínio da União Soviética, a ampliação da democracia no mundo tem possibilitado mudanças econômicas, sociais e políticas sem traumas generalizados. O Chile de Lagos e Bachelet, o Brasil de Lula, a Espanha de Zapateiro e o Reino Unido de Tony Blair são os mais notáveis exemplos do quadro descrito. Há quem entenda o diálogo entre conservadores, trabalhistas, liberais e socialistas, entre outros, como perversão do processo revolucionário. Francis Fukuyama, por sua vez, apresenta alternativa mais ponderada para o entendimento do fenômeno. Segundo ele, a democracia liberal constituiria a síntese das demais formas de governos. A despeito da polêmica que o assunto possa inspirar, uma conclusão é certa: com a dissipação da idéia de revolução como momento de ruptura, as diversas minorias deixaram de ser hostilizadas e passaram a compor o espaço de definição dos interesses nacionais de seus países. As revoluções democráticas são resultados do equilíbrio entre os distintos anseios sociais.
Depois de viver dois períodos de ruptura institucional, o Brasil experimenta, desde meados da década de 1980, a era das “revoluções legitimadas”. As Revoluções de 1930 e 1964 instalaram no País governos autoritários que, em nome da “causa revolucionária”, restringiram em vários aspectos as liberdades civis. Com o retorno ao regime democrático, a sociedade brasileira demanda participação ativa no processo de formulação política e rechaça o radicalismo. É indiscutível, por exemplo, que o êxito do Partido dos Trabalhadores-PT dependeu, em grande medida, da reformulação de seu discurso de “superação” da ordem econômica vigente, do abandono de uma retórica excludente e da adoção de políticas inclusivas e consensuais.
Importa observar, contudo, que há setores no continente em que a retórica da mudança radical e traumática ainda encontra eco. As recentes imagens de violência contra protestos de estudantes venezuelanos, que deixaram saldos de mortos e feridos, trazem à lembrança tristes recordações de momentos em que a diferença foi ferozmente reprimida em nome de projetos de organização social e política muitas vezes até louváveis e desejáveis, mas que se revelaram cruéis e intolerantes. As imagens também servem para demonstrar uma chocante realidade sobre o comportamento humano: os radicalistas parecem não ter aprendido com os erros do passado. Fenômeno que o controverso e mal-compreendido filósofo Nietzche certa vez denominou de “mito do eterno retorno”. Os desacertos se repetem, como se as vítimas dos campos de concentração, dos Gulags e das celas de tortura fossem mesmo apenas números ou fantasmas do passado. As imagens lembram mais. Lembram a vulnerabilidade dos regimes democráticos.
O regime democrático está longe de ser o ideal. Entre os filósofos, desde os clássicos aos mais modernos, a democracia nunca foi entendida como um sistema perfeito. É conhecido que para Aristóteles essa forma de organização política era tida como viciada, pois era um sistema político que privilegiava exclusivamente os pobres. Certamente Aristóteles não era opositor dos pobres. O problema daquele regime estava na palavra “exclusivamente”. Para o filósofo clássico, a melhor organização política era aquela que congregava todos indiscriminadamente, inclusive os ricos, e que contribuía para o desenvolvimento das virtudes de cada indivíduo. Era a República, não o autoritarismo das massas, o regime menos propenso às guerras em Paz Perpétua. De toda forma, na práxis, as democracias contemporâneas mostraram-se mais eficazes na promoção dos direitos das minorias, no diálogo produtivo com as oposições e na garantia de estabilidade durante os processos de alternância política.
Para que os povos do continente americano continuem a desfrutar do exercício pleno dos seus direitos civis, importa que os governos locais reforcem seu compromisso com a democracia. A cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia é a formalização, por parte dos Estados-membros do Mercosul, do entendimento da relevância do tema para o desenvolvimento regional e de seus povos. Merece uma discussão responsável e cuidadosa, pois, o ingresso da Venezuela ao bloco, para se evitar que o consenso formado a respeito dos benefícios da democracia seja rompido.
O ponto de equilíbrio a que chegaram os governos sul-americanos é o de revolução no seu sentido original. É um estado em que as desconfianças são mitigadas e o diálogo estabelecido. Em vez de suprimir a oposição, entende-se agora que melhor é integrá-la ao processo de definição do interesse nacional. Em vez da ruptura com o descontente, entende-se agora que melhor é convidá-lo à mesa para que se definam mais apropriadamente os interesses do continente. É o estágio maduro da interação com o outro. A exclusão da Venezuela desse processo é seguramente indesejável, mas a sua entrada no bloco deve servir para fortalecer o consenso, e não desfazê-lo. O ser humano e seu desenvolvimento devem estar acima de quaisquer projetos políticos pessoais ou partidários, e não o contrário.

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* Professora de Teoria das Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, UnB.

Um comentário:

Nayara Belle disse...

Artigo bastante pertinente e bem estruturado, que nos conduz a pensar no posicionamento e parcerias regionais do Brasil e nos principios democraticos.
Nosso país respeitando o principio da não-interferencia tem como um dos poucos recursos para não contradizer seus valores democraticos articular sua politica externa a ponto de evitar legitimar regimes que ferem tais principios.
Claramente o presidente Venezuelano , Hugo Chavez, tem utilizado de hostilidade àqueles (sejam pessoas ou a mídia) que criticam sua atuação política, ferindo assim a liberdade de expressão e certas liberdades civis.
Mesmo sendo a Venezuela um parceiro estratégico para o Brasil, cabe a prudência de refletir melhor sobre a inclusão do mesmo ao MERCOSul para não balançarmos as, já frageis, estruturas desse bloco.