segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Estratégia Sul-americana de Combate às Drogas? A liderança brasileira no subcontinente em debate

Por José Joaquim G. da Costa Filho

No dia 13 de novembro de 2008, foi assinado entre o ministro de Justiça brasileiro, Tarso Genro, e o ministro do governo boliviano, Alfredo Rada, um acordo lançando uma estratégia regional de combate às drogas. O acordo prevê ações conjuntas de polícias, localização e destruição de laboratórios e pistas de pouso clandestinas, suporte das Forças Armadas e troca de informações sobre o tráfico. No entanto, o ponto do acordo que mais se destaca é a tolerância em relação ao plantio para consumo tradicional das populações andinas. Ou seja, o objetivo será controlar a expansão das lavouras e não a erradicação total das plantações.
Além disso, este acordo ganha grande importância quando contextualizado no quadro geral de combate às drogas na América do Sul. Recentemente, o governo boliviano expulsou do país tanto o embaixador americano em La Paz, Philip Golgberg, como a agência americana de combate às drogas, DEA (Drug Enforcement Administration), acusando-os de conspirarem contra a atual administração do país.
Dessa forma, esta parceria entre Bolívia e Brasil no combate às drogas pode ser analisada como o preenchimento do vácuo de poder deixado pela retirada da influência americana na questão. Ao contrário da posição americana de tolerância zero em relação a qualquer tipo de plantação de coca, o Brasil aceita o lema de Evo Morales, “cocaína zero, mas não coca zero”. Vale ainda ressaltar que o acordo prevê ainda a participação da Argentina, Peru e Chile e, conseqüentemente, a conformação de uma estratégia sul-americana de combate às drogas.
Tendo como base este fato, esta breve análise de política externa tentará avaliar concomitantemente dois objetos de estudo: a possibilidade de sucesso deste acordo e a posição de liderança brasileira no continente sul-americano. Para isto, primeiramente, serão abordados o substrato ideacional e valorativo da política externa brasileira do Governo Lula, assim como suas direções, prioridades e objetivos. Em seguida, serão analisados os condicionantes externos e domésticos em relação aos dois objetos de estudo. Por fim, serão feitas as cabíveis conclusões e traçado um cenário futuro provável. Os níveis de análise utilizados serão o sistêmico e o nacional.

Substrato ideacional e valorativo da política externa do Governo Lula

A eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, representou, nas questões de política externa, uma quebra substancial - mas não ruptura - com a ação externa empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Este último baseava-se, segundo Amado Luiz Cervo, em três tendências de fundo: o neoliberalismo subserviente e destrutivo em relação ao patrimônio da nação, a promoção do desenvolvimento associado às forças do capitalismo e a competição internacional perante a égide do livre mercado.
Com o apoio da opinião pública, Lula estava convencido de que era preciso proceder com uma mudança dos modelos de desenvolvimento econômico e social e de inserção internacional. A concretização do objetivo de autonomia pela integração de FHC parecia estar permeada pela ingenuidade e pela escassez de resultados efetivos – por exemplo, a ratificação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
Sendo assim, segundo Amado Luiz Cervo, que faz um completo resumo do substrato ideacional e valorativo orientador da política externa do atual governo na passagem abaixo, Lula procurou e conseguiu tanto resgatar elementos esquecidos pelo ex-presidente Fernando Henrique quanto fortalecer os princípios históricos básicos da atuação internacional brasileira:

“a ação externa de Lula, enfim, pôs em jogo o acumulado histórico da diplomacia brasileira, composto de princípios e padrões de conduta que reforçam o poder nacional e a capacidade de negociação internacional. Três padrões de conduta foram sacrificados pela fase anterior: a independência de inserção internacional, o realismo evoluído para pragmatismo e o desenvolvimento nacional como vetor da política externa. Lula os recuperou, em certa medida, reforçando ainda os demais componentes do acumulado: autodeterminação e não-intervenção, com solução pacífica de controvérsias, juridicismo, cordialidade oficial no trato com a vizinhança, parcerias estratégicas como eixos privilegiados de ação externa e multilateralismo”.

Em relação às direções/prioridades de política externa do governo Lula, pode-se apontar três principais. Em relação ao campo multilateral, o país abandonou a ilusão Kantiana do ordenamento harmonioso e passou a adotar uma posição mais pragmática, pro ativa e, às vezes, contestadora. Em segundo lugar, Lula buscou superar a situação de vulnerabilidade deixada por FHC, conformada, principalmente, por três mecanismos: dependência tecnológica, empresarial e financeira.
Por fim, a terceira direção/prioridade de atuação do governo Lula é a América do Sul. Embora já fosse prioridade para FHC, a ênfase no subcontinente foi redobrada. Há um projeto de construção de uma unidade política, econômica e de segurança na América do Sul que possui apoio do Ministério das Relações Exteriores e da Assessoria Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República.
Tendo em vista o breve panorama acerca dos traços gerais da política externa do Governo Lula, pode-se perceber que a integração sul-americana é uma prioridade para o Brasil atualmente e que este também pretende assumir um papel de liderança na região. No entanto, mantendo seus princípios históricos de inserção internacional e relacionamento com os vizinhos, não objetiva alcançar uma posição hegemônica. Ao contrário, busca respeitar as particularidades de cada povo. È neste contexto que se encaixa o acordo de combate às drogas assinado entre Brasil e Bolívia.

Condicionantes externos

No entanto para entender mais profundamente a possibilidade de sucesso deste acordo e a posição da liderança brasileira na América do Sul, é preciso, além de observar os contornos gerais da política externa brasileira, interpretar alguns condicionantes externos e domésticos relacionados com os objetos de estudo.
O primeiro destes condicionantes externos é a discretíssima importância da América do Sul para a política externa americana. A política do governo Bush deu prioridade à guerra ao terror, ao Oriente Médio e às invasões do Iraque e Afeganistão, colocando em segundo plano sua atuação no continente americano. Além disso, a eleição de Barack Obama para presidência dos Estados Unidos não parece apontar nenhuma mudança substancial em relação ao nível de prioridade dado ao relacionamento deste país com a América do Sul.
Coaduna-se a este contexto, o fato de não haver nenhum governo na região que seja aliado direto dos Estados Unidos. A única exceção é o governo de Álvaro Uribe na Colômbia. Os demais variam de uma posição de busca de uma agenda afirmativa – por exemplo, o Brasil – até uma posição de aberta confrontação, pelo menos na retórica, com os Estados Unidos – por exemplo, Venezuela e Bolívia.
Estes dois condicionantes resultam numa visível deterioração da histórica liderança americana na região. Isto proporciona um vácuo de poder para que o Brasil possa exercer sua tendência natural de líder na América do Sul. È neste contexto que se insere o acordo entre Brasil e Bolívia para o combate às drogas. No entanto, há alguns outros condicionantes externos que dificultam a consolidação desta aspiração brasileira.
O primeiro deles é a dependência econômica e financeira da maioria dos países da região em relação aos Estados Unidos. A Venezuela é um grande exemplo desta condicionante, pois, embora mantenha uma forte retórica de contestação da hegemonia americana, tem no mercado americano o maior consumidor de suas exportações, baseadas, principalmente, no petróleo. A Bolívia também pode ser citada como exemplo. Ao mesmo tempo que apresenta-se hostil à ajuda americana para o combate às drogas, depende de programas tarifários especiais para a entrada da maioria de seus produtos nos Estados Unidos, um de seus maiores parceiros comerciais. Segundo a revista semanal The Economist, pelo menos 30. 000 empregos estão diretamente ligados às exportações, principalmente de produtos têxteis, que entram livres de taxas no mercado americano.
Tendo em vista esta conjuntura, pode-se perguntar: seria possível o Brasil substituir os Estados Unidos como o principal parceiro da maioria dos países da América do Sul? Mesmo se fosse possível, há interesse em promover esta substituição? Não há respostas para estas perguntas, mas a segunda condicionante externa que entrava a aspiração brasileira de liderança mostra que se está muito longe desta substituição. Ela está relacionada à balança comercial superavitária para o Brasil em relação a todos os países da região.
Segundo a Apex-Brasil, o superávit do Brasil com a América Latina nos oito primeiros meses de 2007 foi de US$ 11,3 bilhões – US$ 200 milhões a mais do que no mesmo período de 2006 (US$ 11,1 bilhões). Já a corrente de comércio entre o Brasil e a América Latina totalizou US$ 37,3 bilhões de janeiro a agosto. Esse quadro se repete nas relações bilatérias do Brasil com os países da América do Sul.
Por exemplo, em relação ao Uruguai, embora tenha sustentado déficits sucessivos desde o início da década de 90, a balança comercial se tornou superavitária desde 2004. Em 2006, o Brasil vendeu ao Uruguai quase o dobro do que importou - US$ 1 bilhão contra US$ 640 milhões. Além disso, pode-se citar que o Brasil exporta quase dez vezes mais do que importa da Venezuela e quase cinco vezes mais do que importa da Colômbia.

Condicionantes Domésticos

Os condicionantes domésticos aqui identificados foram dois principais. Ambos apontam para o sucesso do acordo entre Brasil e Bolívia de combate às drogas e a consolidação da liderança brasileira na América do Sul. O primeiro destes condicionantes é a existência de vontade política e de baixa contestação em relação às duas questões.
Como já foi abordado, priorizar a América do Sul como palco de ação brasileira é ponto bastante consolidado entre os principais atores de formulação de política externa do Brasil. Isto não significa que não existam críticas a esta estratégia. Alguns setores empresariais e da mídia, em algumas ocasiões, se mostram desfavoráveis a uma ênfase na América do Sul. No entanto, esta resistência não é sistemática ou consistente e baseia-se no argumento facilmente contornável de que priorizar a região prejudica as relações com os principais parceiros desenvolvidos.
Em relação especificamente ao acordo entre Brasil e Bolívia aqui estudado, pode-se perceber que também há vontade política e baixa contestação. Um forte indicador disto é o fato de o Ministério da Justiça estar à frente do processo, sendo somente assessorado pelo Itamaraty.
O segundo condicionante doméstico é a mudança de perfil do país nos últimos anos. De maneira geral, a economia brasileira passou por uma fase de forte crescimento e considerável, porém ainda muito pequena, distribuição de renda. Além disso, o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, vem assistindo à internacionalização de suas principais e mais competitivas empresas. Dessa forma, é do interesse do empresariado brasileiro expandir suas relações comerciais e investimentos no exterior e a América do Sul apresenta-se como uma região de grandes possibilidades nestes dois campos.
Adicionalmente, o Brasil, nos últimos anos, deixou de ser somente uma rota de tráfico e possui hoje um perfil de pólo de consumo de drogas, principalmente de derivados de coca - por exemplo, cocaína e merla. Desta forma, à medida que as conseqüências negativas do consumo em massa de drogas vão aparecendo, as autoridades brasileiras se preocupam cada vez mais com o combate às drogas ilícitas. A cooperação com a Bolívia, então, torna-se mais urgente e necessária.

Conclusão

Tendo como base o que foi aqui analisado, é possível concluir que há grandes chances de o acordo entre Brasil e Bolívia para o combate às drogas seja bem sucedido. Há um conjunto de condicionantes favoráveis a este cenário: vontade política doméstica, urgência de tratar a questão internamente, diminuição da influência americana no combate às drogas na Bolívia, conformidade com as prioridades da política externa do Governo Lula e certa aproximação política entre Evo Morales, presidente boliviano, e Lula.
No entanto, embora a iniciativa de cooperação com os bolivianos seja um importante passo, não se pode ter o mesmo otimismo em relação à consolidação da liderança brasileira na América do Sul. Ela exigirá ainda grande esforço por parte do Brasil, principalmente, no âmbito econômico. Para sua confirmação, seria preciso maior discussão e apoio público e a implementação de uma impopular suavização – não necessariamente reversão – do superávit da balança comercial brasileira com a região.

Referências Bibliográficas

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