sexta-feira, 19 de junho de 2009

Comentários sobre o filme “Intrigas de Estado”

O filme “Intrigas de Estado”, sem dúvida, tem um forte elenco e um roteiro excelente, que explora formidavelmente as ligações entre os mundos da política e do jornalismo na capital americana. Entretanto, está no fundo da trama principal do filme o que mais nos interessa: a incrível e lucrativa expansão das empresas privadas de segurança (em inglês, Private Military Companies (PMCs) ou Private Security Companies (PSCs)).

O personagem principal coordena um comitê no Congresso americano responsável por investigar a atuação destas empresas e suas possíveis irregularidades. A principal destas empresas, PointCorp, estaria lucrando centenas de milhões (ou talvez bilhões) por serviços prestados ao Departamento de Estado e ao Departamento de Segurança Nacional, como apoio logístico na Guerra do Iraque e treinamento de pessoal nos Estados Unidos.

Alguns podem achar que isto não passa de uma ficção, assim como boa parte do filme. No entanto, muitas semelhanças podem ser identificadas com a realidade. Esta empresa fictícia parece ser uma clara alusão à Blackwater, grande empresa privada de segurança com contratos milionários para atuação no Iraque junto às tropas americanas e envolvida em escândalos de morte de civis iraquianos inocentes. O caso Blackwater foi a ponta do iceberg que trouxe muita atenção da academia e da mídia internacional para assunto das PMCs/PSCs.

Mesmo que não haja uma intencional ligação com esta empresa em particular, a PointCorp apresenta as principais características de uma grande empresa privada de segurança da atualidade. É composta em sua maioria de ex-militares com excelente formação. Presta variados serviços militares ao governo americano em diversas partes do planeta, desde treinamento de militares e operações de logística até proteção de autoridades, agentes humanitários e prédios em zonas de alta insegurança. Apresenta um sólido crescimento nos últimos anos. Participa de uma associação de PMCs/PSCs para fazer lobby junto ao Congresso e à sociedade americanos. A essência de suas ações é semelhante à dos mercenários, muito comuns atualmente nos conflitos africanos, mas o nível de profissionalismo e eficiência é incomparável.

Por outro lado, é preciso ficar atento para alguns exageros e incongruências com a realidade. Por exemplo, o filme aponta o fato de que todos os funcionários da PointCorp são ex-militares americanos, mas, na realidade, a maior parte destas empresas contrata também uma boa parte de seu pessoal de países em desenvolvimento para abaixar seus custos e burlar questões legais. Além disso, não é mencionado um dos pontos mais polêmicos em relação a estas empresas: a ausência de um status legal para elas. Isto é uma das principais causas para a baixa transparência e responsabilidade deste crescente ramo de negócios.

Para aqueles que se interessaram nesta breve descrição das companhias privadas de segurança, não deixem de buscar mais leituras na Internet e de assistir ao filme.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: nova estratégia para o Paquistão e Afeganistão

por Diogo Ramos Coelho

A guerra do ocidente no Afeganistão, iniciada em 2001, não poderá ser vencida se lutada apenas dentro das fronteiras desse país. Essa constatação é amplamente acatada e culminou, no dia 27 de março de 2009, com o anúncio do governo Obama da estratégia conhecida como AfPak (Afeganistão e Paquistão).

A Guerra contra o Terror empreendida por George W. Bush em terras afegãs forçou a retirada de diversos grupos fundamentalistas – principalmente membros da rede Al Qaeda e do Talibã – para as regiões tribais montanhosas na fronteira paquistanesa, onde puderam reconstituir-se e dar retorno a suas atividades. Essas áreas consistem de sete partes chamas “agências”: Bajaur, Mohmand, Khyber, Orakzai, Kurram e o Waziristan do Norte e do Sul.[1] Islamabad possui historicamente baixo controle sobre essas regiões. Por serem “semi-autônomas”, ofereceram refúgio às milícias afegãs e paquistanesas.  O quadro de insegurança é ainda agravado pela instabilidade política, pela fragilidade das instituições e pelas profundas divisões étnicas que marcam os dois países.

O Paquistão é um Estado de governabilidade fragmentada. Desde a independência em 1947, o regime político no país alternou-se entre governos democráticos instáveis e governos militares. Os militantes islâmicos também são agentes poderosos, posicionando-se algumas vezes ao lado do governo central – como no caso dos jihadis recrutados e treinados para lutar nas guerras da Caxemira e no Afeganistão – e outras contra o governo – como os militantes que lutam hoje contra as forças de segurança paquistanesa. Já o governo afegão de Hamid Karzai, apesar de desfrutar da ajuda, financiamento e treinamento dos militares americanos, ainda não desenvolveu capacidade de garantir o controle de diversas regiões do país.

Nos últimos dois anos, o já instável ambiente de segurança no Afeganistão e no Paquistão tornou-se ainda pior. O aumento do número de milícias ligadas à Al-Qaeda, ao Talibã de Mullah Omar ou Baitullah Mehsud, assim como o aumento de narcotraficantes, de extremistas sectários, entre outros, foram fatores de forte desestabilização das regiões sul e leste do Afeganistão e do Paquistão Ocidental.[2] Ao mesmo tempo, grupos como os extremistas anti-indianos Punjabi e warlords (“senhores de guerra”) da Ásia Central intensificaram suas ações em outras regiões dos dois países. Esse cenário de insegurança é agravado principalmente pelo fato do Estado paquistanês ser um Estado nuclear. As armas nucleares foram desenvolvidas como mecanismos de containment ao avanço nuclear indiano. Hoje, a possibilidade dessas armas caírem nas mãos de militantes e serem usadas contra países no ocidente ou contra o próprio Estado paquistanês configura como imenso – e intolerável – risco.

Instituições frágeis, lideranças fracas e recursos inadequados limitam a capacidade de Cabul e Islamabad combaterem a militância violenta a longo prazo. Nesse sentido, a cooperação americana com os dois governos é vital: seja para a garantir segurança dos EUA, mudar os rumos no combate ao terrorismo ou assegurar a estabilidade na região. De acordo com a Casa Branca, o objetivo fundamental da nova política americana no Paquistão e no Afeganistão é combater os militantes que oferecem “safe havens” para fundamentalistas e construir estruturas de segurança que aumentem a eficácia das ações locais antiterroristas e contra os insurgentes. A injeção de recursos dos EUA serviria para desestabilizar o Talibã e membros da Al Qaeda e, assim, oferecer espaço para a ação dos governos em Islamabad e Cabul.

Os dois principais elementos do AfPak, portanto, são: 1) a abordagem regional: o presidente americano irá tratar o Afeganistão e Paquistão como dos países, mas como único desafio. A ênfase maior será no Paquistão: aumento da presença militar americana, auxílio econômico e no treinamento e capacitação das forças de segurança locais. A estratégia também envolve contato com outros atores e países na região, entre os quais destacam-se Índia, Rússia e China; e 2) a expansão dos recursos no combate ao terrorismo: a estratégia foca não apenas o combate militar e as capacidades de defesa, mas também inclui investimentos financeiros nas economias paquistanesa e afegã, recursos diplomáticos, incentivos ao desenvolvimento e construção de mecanismos eficazes de governança e fortalecimento institucional.

As principais mudanças com o AfPak não são somente no campo estratégico. Há mudanças na percepção americana em relação ao combate à violência fragmentada. O poder militar, apesar de importante, possui cada vez menos peso, seja no combate às milícias imersas entre a população civil, seja como fator de estabilização dos laços de interdependência entre os países afetados pelo terrorismo. Desestabilizar os terroristas requer o envolvimento de governos, organizações e instituições – regionais e locais – os quais possam oferecer respostas aos desafios da instabilidade política e econômica. A retórica de promoção da democracia do governo Bush cede lugar à necessidade de fornecer assistência e ajuda financeira para fortalecer a governabilidade em países caracterizados por Estados falidos.

A complexidade dos objetivos da estratégia pode ser sua maior falha. Construir governos moderados, estáveis e eficientes em Islamabad e Cabul, além de combater tensões regionais de longas datas, são causas admiráveis, mas que requerem investimentos a longo prazo – e é possível que os únicos resultados obtidos com esses investimentos sejam dividendos altos e precários. Resolver problemas históricos como o sectarismo, instabilidade política, fragmentação da violência e divisões étnicas requer a mobilização de diversos recursos, mudanças no jogo de interesses na região e reformas institucionais – além de outros fatores que transcendem a simples vontade de um governo. Ainda, os EUA, efetivamente, possuem baixo interesse na região – e mesmo um Paquistão e um Afeganistão estáveis e viáveis economicamente permaneceriam pobres e com baixa relevância para as considerações militares ou econômicas de Washington. Nesse sentido, pode-se argumentar que a estratégia anunciada pela administração de Obama é demasiadamente onerosa e abrangente para combater uma ameaça estritamente definida: a Al Qaeda e o Talibã. O foco da parceria dos EUA com o Afeganistão e o Paquistão (assim com outros atores na região), portanto, deveria voltar-se e intensificar-se nos grupos terroristas, na ajuda às forças de inteligência capazes de detectar e combater esses grupos, e não em aspirações gerais de restabelecimento da ordem e da estabilidade nos dois países.

Por outro lado, restringir o foco da estratégia de Washington representaria uma falsa economia de recursos, enquanto criaria maiores ameaças aos interesses de segurança americanos. O cerne do problema é o Paquistão, onde menos recursos foram gastos (se comparado ao Afeganistão pós-11 de setembro), onde a presença americana é menor, onde a atual conjuntura converge para o aumento do fundamentalismo e onde a confiança em Washington é extremamente debilitada. Se as tendências de “talibanização” das regiões semi-autônomas paquistanesas persistirem e avançarem, a próxima geração de terroristas irá nascer e ser treinada em um Paquistão frágil, dividido, violento e nuclear. O fortalecimento das instituições paquistanesas se mostra extremamente necessário como meio para assegurar a cooperação bilateral e no combate aos militantes extremistas a longo prazo.

Erradicar totalmente o terrorismo passa, cada vez mais, a ser entendido como uma meta irreal e ilusória. Cabe tentar erradicar as causas que fortalecem a militância violenta. Além do confronto armado, o combate à violência fragmentada passa pelo combate aos fatores estruturais que permitem o fortalecimento dos grupos extremistas. Hoje, o Paquistão é o local cuja conjuntura fornece os principais incentivos para a propagação do terrorismo. E é um Estado nuclear. Retrair a expansão dos recursos de assistência às instituições no país, enquanto Islamabad e Washington permanecem aliados, seria um erro estratégico. A principal transformação na estratégia do governo Obama deveria ser sair do AfPak para um PakAf.



[1] Council on Foreign Relations. Disponível em: http://www.cfr.org/publication/11973/. Acesso em: 04 de junho de 2009.

[2] MARKEY, Daniel. From AfPak to PakAf: A Response to the New U.S. Strategy for South Asia. Council on Foreign Relations. Fevereiro, 2009.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A política externa de Obama em perspectiva: o Fechamento da prisão em Guantánamo e proibição do uso da tortura

por Diogo Ramos Coelho


Ninguém irá ouvir o Presidente Barack Obama pronunciar as palavras “guerra ao terror”. As decisões de fechar a prisão de Guantánamo, proibir o uso da tortura, rever as políticas americanas de interrogatório e reafirmar o respeito às Convenções de Genebra e à Convenção Contra a Tortura demonstram o início da reversão das principais políticas de segurança nacional de George W. Bush, desde 2002.

A política de defesa e de segurança de um país está enquadrada em um campo estratégico de combate a ameaças existenciais (ameaças, por exemplo, à existência de um Estado, aos princípios constitutivos de um sistema político, à estabilidade econômica ou aos recursos naturais de sustento de uma sociedade). Essas políticas de defesa e segurança requerem a utilização de medidas e poderes excepcionais, com o objetivo de eliminar as ameaças que enfrentam. Nesse sentido, no dia 18 de setembro de 2001, uma resolução do Congresso americano autorizou o Presidente Bush a utilizar “todas as forças necessárias e apropriadas” para combater os países, as organizações ou as pessoas, por ele designadas, que promovessem atividades terroristas.

Desde o fim da Guerra Fria, o sistema político americano tem oscilado no apoio ao direito internacional e às instituições internacionais como instrumentos capazes de promover a segurança do país. Os EUA se estabeleceram, no século XX, como o principal guardião da ordem no sistema internacional; entretanto, em diversas ocasiões, negou-se a respeitar essas regras. Depois do 11 de setembro, as estratégias de combate ao terrorismo do governo Bush envolveram alto grau de “autonomia” dos EUA perante as prescrições do direito internacional. As ações unilaterais no Iraque, Abu Ghraib, tortura e a retórica da promoção da democracia com a Guerra do Iraque acabaram por comprometer a credibilidade americana no mundo.

Hoje, as principais ameaças à segurança global – a proliferação de armas nucleares, a mudança climática, o terrorismo, os conflitos, a pobreza, as epidemias e a instabilidade econômica – não são constrangidas por fronteiras nacionais. As respostas a essas ameaças demandam maiores níveis de cooperação e mecanismos de governança global. Nesse contexto, os EUA desempenham papel de destaque: nenhum outro Estado possui a capacidade diplomática, política e econômica necessária para renovar a cooperação entre as principais potências do mundo. Porém, para liderar, os EUA precisam primeiro renovar seu comprometimento com a ordem internacional.

Desde que iniciou as operações em 2001, imagens de tortura, denúncias de maus tratos e incertezas jurídicas tornaram a prisão militar da Baia de Guantánamo, em Cuba, símbolo da falta de comprometimento dos EUA com o sistema de direito internacional. Em quase oito anos de existência, aproximadamente 800 indivíduos – designados, ou tratados como, combatentes inimigos pelo Departamento de Defesa americano – estiveram detidos na base militar. O governo federal transferiu mais de 500 desses indivíduos para seus países de origem, ou para outro país, ou simplesmente os colocou em liberdade. Atualmente, a prisão detém cerca de 240 pessoas suspeitas de vínculos com o terrorismo.

No dia 22 de Janeiro de 2009, Obama divulgou uma ordem executiva determinando o fechamento da prisão militar em Guantánamo. No documento, o presidente afirma que:

In view of the significant concerns raised by these detentions, both within the United States and internationally, prompt and appropriate disposition of the individuals currently detained at Guantánamo and closure of the facilities in which they are detained would further the national security and foreign policy interests of the United States and the interests of justice.”

O fechamento da prisão, a proibição do uso da tortura, a revisão da política de interrogatório e a reafirmação do  respeito às Convenções de Genebra e à Convenção Contra a Tortura podem ser interpretados como sinais do governo Obama para novo engajamento dos EUA com o sistema de ordem internacional. Há a percepção de que a segurança nacional tornou-se interdependente com a segurança global. A globalização criou laços de interdependência que não favorecem o militarismo ou ações unilaterais. Para combater ameaças globais, deve-se articular respostas também globais. É nesse sentido que o fechamento de Guantánamo e a proibição do uso da tortura convergem com os interesses de segurança americanos: a restauração da confiança no papel dos EUA como principal articulador de ações coletivas.

No campo do discurso, as intenções do governo americano apontam no caminho correto. Entretanto, ao discutir política, cabe sempre lembrar: uma decisão tomada não é necessariamente uma ação cumprida. Transformar o discurso em realidade é algo complicado – e que demanda múltiplos esforços. Nesse sentido, em relação a Guantánamo, a administração de Obama encontra dificuldades em traçar um plano sobre o destino dos detentos remanescentes na prisão militar. Os esforços para transferir aqueles que são considerados menos perigosos para outros países – onde não representem uma ameaça à segurança e onde também não sofram abusos – esbarra na falta de governos dispostos a colaborar. Ainda, é incerto como se dará o processo de julgamento contra aqueles evidentemente envolvidos com práticas terroristas. Essas incertezas culminaram com a não-aprovação no Congresso americano, no dia 20 de maio de 2009, dos fundos pedidos pelo executivo para por em prática o processo de fechamento da prisão. Faltavam detalhes, alegou-se.

O argumento moral para o fechamento de Guantánamo e para a proibição do uso da tortura permanece inatacável. Mais que isso: alia-se pragmaticamente à restauração do papel dos EUA como o principal articulador de políticas cooperativas. No entanto, uma esperança vaga e virtuosa do novo compromisso dos EUA com a ordem internacional pode soar um pouco vazia diante dos limites impostos pela realidade política – e diante da constatação de que as medidas adotadas pelo governo Bush nos tempos do 11 de setembro pareciam justificáveis, tanto para os democratas quanto para os republicanos.  

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Desafi(n)ando a Doutrina Bush

De volta aos anos 90, com o fim do mandato de Bill Clinton, assistiu-se a uma mudança radical nas orientações da política externa norte-americana. O democrata havia simbolizado, durante os oito anos que ocupou a cadeira de presidente da maior potência global, a possibilidade de utilização de ferramentas econômicas e multilaterais para garantir a primariza dos Estados Unidos da América (EUA) no cenário internacional, agora livre do embate Leste-Oeste. No caminho inverso, seu sucessor, George W. Bush, apostou na busca pelo mesmo objetivo por meios militares e unilaterais.
Nesse cenário, o governo do republicano erigiu, após os atentados de 11 de setembro, a Doutrina Bush, eixo paradigmático que sustentaria, até o final do governo em 2008, a política externa da potência. Em matéria de segurança, essa trazia, em linhas gerais, a importância do combate ao terrorismo – da mesma forma que a qualquer outra instituição que apoiasse atividades dessa natureza –, e, também, a ampliação dos poderes do Estado de intervir e investigar qualquer suspeita de atividade terrorista, inclusive entre os próprios norte-americanos natos – diluindo, assim, direitos constitucionais que antes prezavam pelo respeito à privacidade dos indivíduos. A Doutrina Bush, que é encarnada na National Security Strategy de 2002, estava envolvida em uma intensa retórica que freqüentemente associava signos como liberdade e democracia às questões de segurança não só dos EUA, mas como de todo o sistema de Estados. Nesse âmbito, a Doutrina Bush parece retomar algo da filosofia kantiana, presente em A Paz Perpétua: a simples assertiva de que o mundo democrático é o mundo da paz – dado que povos (que em sistemas democráticos governam suas nações) nunca querem a guerra.
Para além disso, um dos vieses mais significativos para a configuração de alguns temas da política internacional contemporânea parece ter sido o projeto de promoção da democracia empreendido pelos EUA, sustentado pela arrogância republicana presente no governo e pela própria Doutrina Bush. A análise dos discursos presidenciais e dos Secretários de Estado durante os oito anos em que George W. Bush permaneceu em Washington, evidenciam a direta relação que havia, no entendimento (ou no interesse) deles, entre democracia e segurança, para os EUA e para o mundo.
Às vésperas das eleições para a cadeira de presidente, no Irã, a maior democracia do mundo islâmico, o debate acerca da política externa desse país permanece quente entre os candidatos e eleitores. O atual presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, deu início a um ambicioso projeto nuclear no país, sob a retórica de que esse teria apenas fins pacíficos. Apesar das divergências, parece não haver mais dúvidas que o Irã busca se armar com ogivas nucleares, pelo menos aos olhos de Washington. De qualquer forma, cabe o questionamento acerca do alcance explicativo do paradigma mais evocado pela administração republicana, findada em 2008, da Doutrina Bush: o de que democracias não lutam entre si, e que, além disso, cultivando o sistema democrático pelo mundo a fora, colheremos nações totalmente desinteressadas em se armarem para estarem prontas a causar uma brecha na paz.
A reflexão concernente a esse tema específico nos faz elucidar pelo menos dois questionamentos que não devem (ou não deveriam) ser deixados de lado. Associar a existência do modelo democracia com a garantia de segurança internacional, pelo menos no caso do Irã, parece não ser uma teoria que se aplique a todos os casos. Nesse sentido, se não podemos tratá-la como uma teoria, ainda resta a esse raciocínio da Doutrina Bush servir simplesmente como retórica, como por várias vezes os EUA têm tratado seu discurso em política externa. Em segundo lugar, ascende a reflexão de que a democracia é um sistema político que dá margem a uma flexibilidade, possibilitando a transfiguração de vontades, ideologias e interesses “nacionais” em políticas públicas. Por esse motivo, não é dada a garantia de democracias estarão sempre desinteressadas empreender guerras (ou, que seja, ameaças) umas às outras.
O futuro ainda reserva algumas respostas – mesmo que não definitivas, sequer completas, como desejaríamos. A primeira delas deve ser buscada nos resultados das eleições iranianas, no sentido de compreender melhor qual será a demanda e o interesse nacional em matéria de política externa (bem como uma plausível avaliação do governo de Ahmadinejad). Do outro lado do muro, deve-se atentar para os novos caminhos da política externa norte-americana. Ainda é cedo para tentar esboçar qualquer tipo-ideal que categorizaria o projeto de inserção internacional formulado por Obama e sua equipe. De qualquer forma, alguns elementos da nova administração democrata já podem ser percebidos, dentre eles a visível mudança no tom discursivo do presidente (evidenciado pela disposição a reativar canais de diálogo antes interrompidos com outras nações), a mudança na estratégia militar no Afeganistão e no Iraque, e, mais importante ainda, a utilização da diplomacia para apresentar e construir a nova inserção dos EUA no mundo.


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Refrerências

CASTRO SANTOS, M. H. ; YASSINE, A. . Exporting Democracy: Kantian Peace or Western Hegemony Expression?. In: 49th International Studies Association Annual Convention, 2008, San Francisco.

CASTRO SANTOS, M. H. . Exportação de democracia na política externa norte-americana: idéias, doutrinas e o uso da força. Revista Brasileira de Política Internacional, 2009.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos.Edições 70, 2008.

THE WHITE HOUSE. The National Security Strategy of the United States of America. Washington, 2002. Disponível em: http://merln.ndu.edu/whitepapers/USnss2002.pdf

VÁRIOS. The War on Terror and the American ‘Empire’ After the Cold War. Editado por: Alejandro Colás & Richard Saull. Routledge, 2005.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Convite: CONFLITOS EM DEBATE

Perspectiva Histórica das Relações Brasil - Cuba

José Joaquim G. da Costa Filho
O Ministro Celso Amorim chega à Assembléia Geral da OEA em Honduras, nos dias 02 e 03 de junho de 2009, defendendo um “enterro o mais burocrático possível” da decisão tomada pela organização em 1962, excluindo o governo de Cuba de participar de suas atividades. Ainda segundo o chanceler, esta decisão seria uma relíquia da Guerra Fria e, como não faz mais sentido falar em uma ameaça ideológica vinda da ilha caribenha, é preciso e possível anular a resolução de 1962. A reintegração do regime cubano à OEA seria outra questão. Para entender melhor esta posição do Ministro das Relações Exteriores Brasileiro, é essencial recorrer a um histórico das relações entre Brasil e Cuba.

Breve Histórico das Relações Brasil – Cuba desde 1959

Após a Revolução de 1959 em Cuba, o Brasil manteve uma posição de respeito em relação ao governo de Fidel Castro, baseada nos princípios de não-intervenção e autodeterminação. Este posicionamento não foi alterado nem mesmo com a frustrada tentativa norte-americana de invadir a Baía dos Porcos, em relação a qual o governo Quadros manifestou “profunda apreensão”. Ainda durante este governo, Che Guevara recebeu do presidente brasileiro a Ordem do Cruzeiro do Sul. Este ato gerou forte oposição doméstica a Quadros.

Em seguida, já durante o governo Goulart, o Brasil defendeu uma posição conciliadora durante a VIII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores da OEA, ocorrida em Punta del Este em janeiro de 1962. San Tiago Dantas propunha, por um lado, o respeito ao princípio de não-intervenção e, por outro lado, a neutralização do regime cubano por meio de um estatuto que regulasse as suas relações com o restante da América. A proposta brasileira não foi acolhida pelos demais países (nem por forças políticas internas), mas mesmo assim o chanceler se sentiu vitorioso pelo que não se aprovou em Punta del Este, como uma ofensiva militar ou sanções mais duras, e pelo reconhecimento que reivindicações sindicais não deveriam ser confundidas com movimento comunista.

A ata final da VIII Reunião de Consulta, dentre outras coisas: a) reconheceu e repudiou a ofensiva comunista na América; b) excluiu o governo de Cuba da participação no sistema interamericano, bem como da Junta Interamericana de Defesa (isto não significa a expulsão do país da OEA, apenas a exclusão de seu governo comunista); c) e suspendeu imediatamente o comércio e o tráfico de armas e material de guerra de todo gênero com Cuba. Os votos do Brasil, Argentina, México, Chile, Equador e Bolívia foram de abstenção.

O rompimento das relações diplomáticas com Cuba ocorreu no dia 13 de maio de 1964 durante o governo Castello Branco (1964-1967), primeiro presidente militar depois do golpe de 1964. Esta ruptura foi um reflexo da pressão doméstica das forças militares, pró-americanas e de direita, engajadas na eliminação de quaisquer atritos com os Estados Unidos, embora houvesse resistência do Itamaraty. Este ato foi acompanhado de uma acusação oficial de que Cuba estaria interferindo em assuntos internos por meio de uma aliança com grupos marxistas brasileiros. A justificativa para esta decisão foi baseada em argumentos ideológicos, a escolha marxista cubana teria excluído o país do “hemisfério livre”, e práticos, a comprovação do desembarque de armas provenientes da ilha na Venezuela.

Além disso, o Brasil aplicou as sanções previstas pelo artigo 8 do Tratado do Rio de Janeiro, apesar de ter se oposto a qualquer ação militar contra o regime de Castro, como previsto neste mesmo acordo. Dessa forma, o Brasil colaborou com a estratégia americana de isolamento de Cuba. Esta posição perdurou por todos os governos militares, inclusive durante a vigência do Pragmatismo Responsável de Geisel.

Durante o governo Figueiredo (1979-1985), foram dados os primeiros passos para a normalização das relações com Cuba. No entanto, estes foram passos lentos, pois ainda havia forte oposição a esta mudança dentro do Conselho de Segurança Nacional e do Congresso. Entre 11 e 15 de janeiro de 1982, ocorreu a primeira missão empresarial brasileira, chefiada pelo empresário Ruy Barreto, a visitar Cuba desde o rompimento de relações em 1964.

Após o restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e Cuba, ocorrido durante o governo Sarney, as relações políticas e econômicas têm crescido nas duas últimas décadas. Grande impulso tem sido dado pelo governo Lula (2002-2010), que possui afinidades ideológicas com o regime de Raul Castro, irmão de Fidel Castro. No ano de 2006, por exemplo, o Brasil exportou US$ 343,25 milhões (os principais produtos foram açúcar, frango, café, carne bovina e produtos eletroeletrônicos) e importou US$ 31,59 milhões (os principais produtos foram materiais médicos, níquel, charutos e rum) de Cuba.

Bibliografia:
Cervo, Amado L. & Bueno, Clodoaldo (2002). História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
Reportagem “Amorim defende ‘enterro burocrático’ do caso Cuba”. Folha de São Paulo (jornal impresso), 01/06/09.
Reportagem “Comércio entre Brasil e Cuba bate recorde e atinge quase US$ 400 milhões”. Agência Brasil (jornal online), 07/03/07.
Vizentini, Paulo Fagundes (1998). A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Editora da Univ. Fed. Do Rio Grande do Sul.