sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Teorias de Relações Internacionais e o Conselho de Segurança: a socialização dos atores

Por Felipe Baptista


O grande trunfo do neoliberal-institucionalismo foi ter conseguido mapear a ação de Estados soberanos que, agindo em um sistema anárquico, se dispõem à formação de instituições internacionais, visando a cooperação. Nesse sentido, assistimos a formação de inúmeros organismos internacionais, que erguem regimes e afetam as dinâmicas de ação no sistema internacional, principalmente as questões relativas à segurança e conflitos armados. Quanto a isso, a área de segurança internacional tem sido, desde a ascensão das relações internacionais como uma disciplina à parte, um foco especial de preocupação no escopo de tais instituições.
As Organizações Internacionais contribuem para a alteração das práticas dos atores, sejam eles Estados, empresas privadas ou agentes da sociedade civil, ao instituírem oportunidades formais para a discussão de temas em foros multilaterais, o que aumenta o grau de sociabilidade internacional. Nesse sentido, os Estados, entes soberanos não submetidos a qualquer poder superior, têm a oportunidade de conhecer as intenções, condições e propriedades dos outros atores. Isso reduz drasticamente a desconfiança que os Estados possam ter entre si – percepção que os leva, por vezes, a sustentar políticas agressivas, como por exemplo, investir em uma corrida armamentista.
A Organização das Nações Unidas muito tem trabalhado em função da prevenção de conflitos internacionais, o principal objetivo contido em sua Carta. O Conselho de Segurança(CS), após quase sete décadas de atuação, tem sido um fórum permanente de discussão no qual os Estado discutem todo e qualquer tipo de postura ou ato internacional que interfira na segurança global.
A crítica neo-realista à atuação do CS argumenta que tal órgão não possui um poder decisório efetivo e que é apenas um epifenômeno da distribuição do poder militar entre as nações. Fato, o CS não consegue impor suas decisões à todos os Estados, mas isso não significa que a experiência participativa que esses têm em tal agência seja inválida. Em outras palavras, as organizações internacionais, de fato, não conseguem alterar diretamente as ações dos atores - seja pela inexistência de um Estado global, ou pela preponderância soberana das nações que processam suas políticas exteriores de modo pragmático-, mas conseguem moldar os interesses que sustentas tais ações. Nesse sentido, análises que tratam as instituições - como o Conselho de Segurança - apenas como um simples epifenômeno, desprezando os efeitos dos moldes da interação e de socialização entre os atores que tais organismos podem acarretar, tem um alcance explicativo limitado.


Referências

KEOHANE, Robert. After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton University Press, 1984.

KEOHANE, Robert. International Institutions and State Power: Essays in International Relations Theory. Westview, 1989.

WALTZ, Kenneth. Reflections on Theory of International Politics. A Response to My Critics. In Keohane, Robert: Neorealism and Its Critics. 1986.

WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge University Press, 1999.

WENDT, Alexander. Institutions and International Order. In Global Changes and Theoretical Challenges. Edited by E. Czempiel, and J. Rosenau. Lexington, Mass.: Lexington Books, 1989.

WENDT, Alexander. Rationalism v. Constructivism: A Skeptical View. In Handbook of International Relations. Edited by W. Carlsnaes, T. Risse, and B. Simmons. London: Sage, 2002.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A política de negação do conflito armado, crise humanitária e situação crônica de deslocamento na Colômbia e região vizinha

Por Thais Bessa* (Colaboração)

O conflito armado na Colômbia entre o governo e grupos armados irregulares como as guerrilhas[1] e os paramilitares[2] já dura mais de quarenta anos e tem causado deslocamento massivo. Atualmente a Colômbia tem uma das maiores populações de deslocados internos do mundo. Vários avanços já foram alcançados em relação à proteção desta população, como a adoção da Lei 387 em 1997, mas ainda persitem várias lacunas. Há um alarmante desacordo em relação ao número de deslocados internos, variando entre 2 e 4 milhões[3] e a ajuda oferecida pelo governo aos deslocados é considerada insuficiente e chega a apenas uma parte da população.
Contudo, se o deslocamento interno recebe relativa atenção por parte de tomadores de decisão do governo, de organizações internacionais, dos doadores e da mídia, o mesmo não ocorre com o deslocamento de colombianos e colombianas na região vizinha. Existem atualmente cerca de 525,000 pessoas deslocadas[4] em cinco países da região (Brasil, Costa Rica, Equador, Panamá e Venezuela), dos quais apenas 25,000 foram formalmente reconhecidos como refugiados (UNHCR 2006). Assim, a maioria destes deslocados permanece em uma situação de invisibilidade, sem acesso à proteção internacional a que têm direito, sem assistência humanitária ou soluções duradouras efetivas.
Há uma grande relutância em se reconhecer o caso colombiano tanto como uma crise humanitária quanto como uma situação crônica de deslocamento (Protracted Refugee Situation – PRS). O ACNUR define uma PRS como uma população maior que 25,000 refugiados que permanecem em uma situação de limbo por mais de cinco anos em um país em desenvolvimento. “A vida dos refugiados pode não estar em risco, mas seus direitos básicos e necessidades essenciais econômicas, sociais e psicológicas não são atendidos após anos no exílio” (UNHCR 2004). Especialistas como Gil Loescher e James Milner (2005) entendem ainda que esta definição é altamente insuficiente e não inclui todas as situações crônicas de deslocamento, e que uma PRS refere-se à combinação das condições no país de origem, nos países de asilo e na resposta oferecida pela comundiade internacional, que acaba deixando os refugiados em tal situação de limbo.
O reconhecimento de uma PRS é uma questão de escolha política. Como mencionado, no caso colombiano, é adotada uma política de negação não apenas da crise humanitária e do deslocamento crônico, como do próprio conflito. O governo Uribe tem negado insistentemente o fato de que o país enfrenta um conflito armado interno, e cada vez mais insere suas ações militares no marco da guerra contra o terror pós 11 de setembro. Assim, a Colômbia é apresentada não como um país em conflito, mas como um Estado democrático combatendo ameaças terroristas e o narco-tráfico (UNIFEM 2004). Nas palavras do próprio presidente Uribe: “Eu não falo de guerra total. Nem mesmo de guerra. Ao contrário, eu sempre falei de segurança democrática.” (Orozco 2002:25). Em 2005 o governo publicou o documento “Guidelines for international cooperation projects”, definindo que os documentos de cooperação técnica elaborados por organismos internacionais deveriam se referir sempre à “violência terrorista” em vez de “crise humanitária” e “conflito armado” (Hidalgo 2007).
Tal postura é apoiada pelos governos dos EUA, Canadá e de países da União Européia, que incluíram as guerrilhas FARC-EP e ELN e os paramilitares da AUC em suas listas de organizações terroristas. Como consequência, os deslocados fora da Colômbia são percebidos como migrantes. Mais problemático ainda, grande parte dos que chegam a solicitar refúgio ou reasseentamento nestes países têm seus pedidos negados, pois mesmo que tenham sido violentamente extorquidos pelos grupos armados são acusados de haverem “financiado organizações terroristas” (Fleming et al. 2006).
Ademais, as respostas internacionais oferecidas ao deslocamento causado pelo conflito colombiano são afetadas por dinâmicas políticas e de segurança regionais que não necessariamente coincidem com interesses humanitários. Há tensões recorrentes entre o governo colombiano e seus vizinhos devido ao antagonismo político entre Uribe e os governos da Venezuela e Equador (e em menor escala do Brasil e Panamá). Os governos que têm certa afinidade ideológica com os grupos insurgentes relutam em reconhecê-los como agentes de perseguição, e, consequentemnte, em reconhecer suas vítimas como refugiados. O antagonismo também se deve à presença de membros dos grupos armados em território vizinho e o governo colombiano acusa países da região de apoiarem os grupos “terroristas”. A tensão atingiu seu ápice em fevereiro de 2008 quando forças armadas colombianas atacaram um campo das FARC no lado equatoriano da fronteira (BBC 2008). Ainda no campo da segurança, há vários relatos de movimentos trans-fronteiriços de grupos armados e traficantes de armas, drogas e seres humanos (Fagen et al. 2006; IDMC 2007). Respondendo a esta situação, todos os países vizinhos vêm reforçando sua presença nas fronteiras com a Colômbia (Gottwald 2003).
A política de negação da crise humanitária e da situação de deslocamento crônico também se deve ao fato de que a Colômbia é percebida como um país democrático, de desenvolvimento médio e estável, e não um Estado falido, conceito geralmente associado a situações de conflito interno e grandes fluxos de deslocamento (Jackson 1998). Em contraste com situações de deslocamento forçado na África e no Sudeste Asiático, os refugiados colombianos recebem pouca atenção da comunidade internacional tanto em termos de esforços diplomáticos quanto em termos de recursos financeiros de assistência.
Finalmente, deve ser notado que o deslocamento de colombianos na região não se enquadra no perfil “tradicional” de crises de refugiados. A América Latina é a única região do mundo onde não há campos de refugiados e devido às dificuldades de acesso à terra típicas do sub-continente, a maioria dos deslocados colombianos (internos ou na região vizinha) estão dispersos nas zonas urbanas, especialemente em grandes cidades (Delgado e Laegreid 2001; Gottwald 2003; Meertens e Stoller 2001; UNHCR 2003; UNIFEM 2004). Como se establecem sem ajuda de organizações externas e estão dispersos nas cidades, estes refugiados recebem pouca atenção da comunidade internacional, focada nas imagens tradicionais e desesperadas de campos de refugiados, de grande apelo para a mídia, doadores e para o público em geral.
A política de negação do conflito, crise humanitária e deslocamento crônico traz graves consequências para os deslocados em termos de direitos humanos e soluções duradouras. Como observado, pouquíssimas pessoas têm sua condição de refugiado oficialmente reconhecida pelos governos da região e a maioria absoluta permanece invisível, vivendo em um limbo legal e prático, sem acesso a proteção, assistência e direitos básicos como documentação, moradia, emprego e serviços públicos. O número crescente de colombianos nos países vizinhos também contribui para o aumento da xenofobia e discriminação, uma vez que a população local teme que a presença dos deslocados atraia violência e que gere competição por recursos escassos em regiões que já são historicamente empobrecidas.
A solução de uma crise humanitária e situação crônica de deslocamento inclui quatro dimensões: peace-building, segurança, direitos humanos e desenvolvimento (Loescher e Milner 2005). Contudo, no caso colombiano três destas dimensões têm sido negligenciadas e o foco tem sido colocado no componente de segurança. Especialmente após o 11 de setembro há cada vez menos atenção para a solução do conflito (peace-building) e assistência humanitária, e mais para o combate ao tráfico de drogas e terrorismo (Restrepo e Spagat 2004). Neste sentido, apesar de que o Plano Colômbia foi criado em 1999 como um programa abrangente nas áreas de paz, combate a narcóticos, economia, democracia, desenvolvimento social e direitos humanos, entre 1999 e 2004 cerca de 85% da ajuda financeira dos EUA (pincipal contribuinte externo do Plano) foi destinada a atividades militares (Haugaard et al. 2005). Enquanto a existência do conflito armado for negada com base na guerra contra o terrorismo, o estabelecimento da paz será uma possibilidade cada vez mais distante na Colômbia. E enquanto a existência de uma crise humanitária e de uma situação crônica de deslocamento for negada como consequência desta decisão política, os milhares de deslocados e comunidades receptoras permanecerão em um limbo sem proteção e assistência adequadas.

* Mestre em Migrações Forçadas (com louvor) pela Universidade de Oxford, Reino Unido. Bacharel e mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalhou no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil entre 2004 e 2007, após desenvolver pesquisa acadêmica para o ACNUR, Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) entre 2002 e 2004. Em 2009, realizará estudo sobre o conflito e deslocamento na Colômbia e regiões vizinhas como Pesquisadora Visitante do Refugee Studies Centre, Universidade de Oxford. (thais.bessa@gmail.com)

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Referências Citadas:
BBC (2008) ‘Neighbours cut ties with Colombia’, March 4. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/7276228.stm> (acessado em 18 de maio de 2008)
CODHES (Consultoría para los Derechos Humanos y el Desplazamiento) (2003) Desplazados sin salida?, Bulletin number 46.
DELGADO, E.H. and LAEGREID, T. (2001) ‘Colombia: Creating Peace Amid the Violence. The Church, NGOs and the Displaced’, 205-223 in Vincent, M. and Sorensen, B. R. (eds.) Caught Between Borders: Response Strategies of the Internally Displaced, NRC, London: Pluto Press.
Fagen, P. W, Juan, A.F., Stepputat, F. e Lopez, R.V. (2006) ‘Protracted Displacement in Colombia: National and International Responses’, 73-114 in McDowell, C. and Van Hear, N. (eds.) Catching Fire: Containing Forced Migration in a Volatile World, Lanham, Lexington Books.
Fleming, M., MacLean, E. e TAUB, A. (eds.) (2006) Unintended Consequences: Refugee Victims of the War on Terror, Refugee Fact-Finding Investigation, Georgetown University Law Center, Human Rights Institute.
GOODWIN-GILL, G. (1996) The Refugee in International Law, Oxford, Clarendon Press.
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Haugaard, L., Isacson, A. e Olson, J. (2005) Erasing the Lines: Trends in U.S. military programs with Latin America (online), Latin America Working Group Education Fund, Center for International Policy and Washington Office on Latin America. Disponível em: <http://www.ciponline.org/facts/0512eras.pdf> (acessado em 18 de maio de 2008)
HIDALGO, S. (2007) ‘Colombia: a Crisis Concealed’, 79-85 in Hidalgo, S. And López-Claros, A., The Humanitarian Response Index 2007: Measuring Commitment to Best Practice, Madrid, Development Assistance Research Associates (DARA).
IDMC – Internal Displacement Monitoring Centre (2007a) Colombia Internal Displacement Profile (online) Disponível em: <http://www.internal-displacement.org/idmc/website/countries.nsf/(httpEnvelopes)/A5CC082FFB44327C802570B8005A7334?OpenDocument> (acessado em 18 de maio de 2008)
Jackson, R.H. (1998) “Surrogate Sovereignty? Great Power Responsibility and ‘Failed States’”, Working Paper Nº 25, Institute of International Relations, The University of British Columbia.
LOESCHER, G. e MILNER, J. (2005) Protracted Refugee Situations: Domestic and international security implications, New York, Routledge.
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UNIFEM – United Nations Development Fund for Women (2004) Las Mujeres Colombianas en Busca de la Paz: Una Aproximación a sus Iniciativas y Propuestas, Bogota, UNIFEM.
[1] Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo (FARC-EP), Ejército de Liberación Nacional (ELN) e Ejército de Liberación Popular (ELP).
[2] Unidos desde 1997 na organização guarda-chuva Autodefensas Unidas de Colombia (AUC).
[3] Fonte: Internal Displacement Monitoring Centre (IDMC) 2007. De acordo com os dados do governo, há 1,976,970 deslocados internos e de acordo com a ONG CODHES (Consultoría para los Derechos Humanos y el Desplazamiento) há 3,940,164. Os números são estimativas, acumulados desde 1985 para a CODHES e 1994 para o governo. Contudo, governo e sociedade civil concordam que o sub-registro de deslocados internos chega a 35% (IDMC 2007a).
[4] Este trabalho refere-se à população colombiana deslocada na região como “pessoas deslocadas” ou “refugiados”. Apesar de que apenas uma minoria (menos de 5%) é formalmente reconhecida como refugiada, todos fugiram de seu país devido às mesmas causas, enfrentam as mesmas dificuldades e têm os mesmos direitos. Além disso, a condição de refugiado é considerada “essencialmente declaratória por natureza” (Goodwin-Gill 1996:141). Assim, o ACNUR não faz distinção entre os refugiados de facto e os de jure, considerando todos parte de sua “population of concern”. Similarmente, o termo deslocado interno é usado mesmo quando a pessoa não tenha recebido reconhecimento formal por parte das autoridades governamentais, posição confirmada por uma sentença da Corte Constitucional Colombiana de 2004.