quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Palestra do Prof. Wolfgang Döpcke

Por Denise Galvão

Wolfgang Döpcke apresentou as guerras no Sudão como conflitos de alta complexidade. Tratou das duas principais guerras no país, que são a ocorrida no sul, em disputa com o norte, e o conflito em curso na região de Darfur, no oeste do país. Outras guerras sudanesas, como as disputas nas montanhas de Nuba, foram brevemente mencionadas.


Sobre o conflito norte-sul, ressaltou que está em curso um processo de paz, baseado em acordos que previram a autonomia qualificada da região sul, que reivindicava sua autodeterminação. A guerra, iniciada em 1983 pelo Sudan People’s Liberation Army (SPLA) contra o governo central, ocupado majoritariamente pela elite, do norte do país, durou até 2001-2003, dependendo do marco usado. O período mais acirrado do conflito foi em 1991, quando mudanças políticas na região do Chifre da África, com o realinhamento da Etiópia e da Eritréia, contribuíram para um cisma interno do SPLA. Os acordos de paz, assinados no Quênia, entre 2002 e 2005, estão atualmente em fase de implementação.

As principais reformas previstas são uma nova constituição, a concessão de certa autonomia política ao sul, a limitação da sharia ao norte e a distribuição dos recursos gerados pela exploração do petróleo – cujas reservas concentram-se na região centro-sul do país. Assuntos sensíveis ficaram de fora dos acordos, consistindo potenciais razões para recrudescimento das disputas entre as lideranças norte e sul. Ademais, tropas do norte ainda estão presentes na região sul.


A respeito do conflito em Darfur, Döpcke identificou os principais grupos armados da região como o Justice and Equality Movement (JEM) e o Sudan Liberation Army (SLA). Como instrumento de contra-insurgência de baixo custo, o governo sudanês armou milícias para conter a rebelião. A estratégia empregada foi massacrar a população civil de Darfur, como modo de suprimir a base dessas rebeliões, com operações de terra queimada, execuções em massa, estupros e outras formas de violência. Diante dessa quadro, houve tentativas de ingerência por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que enfrentou resistência da China, de países africanos e do Brasil. A alternativa foi a criação de uma missão da União Africana (UA), ainda que com mandado limitado e contingentes militares mal-equipados, para conduzir tentativas de cessar-fogo.


Após essas considerações, Döpcke comparou os dois conflitos armados no Sudão, identificando várias diferenças, que podem ser facilmente percebidas. Em Darfur, todos são muçulmanos e o conflito não tem o componente de disputa religiosa que tem no sul, onde há populações animistas. Adicionalmente, em Darfur a guerra não envolve disputa pelo controle das riquezas geradas por recursos abundantes presentes no território, como ocorre no sul – petróleo.


Por outro lado, ao analisar as causas profundas dos dois conflitos, Döpcke encontra semelhanças entre as situações no sul e em Darfur. Conforme o Black Book – documento que teria inspirado a revolta do JEM –, há uma profunda desigualdade regional e econômica no Sudão. Apenas 5% da população do Sudão, residentes no norte do país, dominam o Estado e aproveitam seus recursos, desde a independência do país, em 1956. Para Döpcke, a marginalização sistemática da maioria da população é causa profunda de todas as guerras no Sudão. Suas origens históricas remontam ao período anterior à ocupação do território sudanês pelo Egito/pelos otomanos. A exclusão social e política de grande parte da população é mantida pela preponderância cultural do arabismo, identidade fundamentada em mescla de determinantes religiosos, culturais e de descendência.


Ao avaliar a disputa por recursos naturais como causa dos conflitos sudaneses, Döpcke observa que, em Darfur, onde subsiste um islamismo tolerante, a competição intensificada entre os grupos sedentários e os nômades, realidade desde meados dos anos 1980, desintegrou os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos por acesso a fontes de água, por exemplo, devido ao processo de desertificação. Por sua vez, a exploração do petróleo do sul, revertendo-se em riqueza para a elite política e econômica de Cartum (no norte), sem se traduzir em benefícios para as condições de vida da população local, também gerou reivindicações de justiça.


Döpcke pondera que a disputa por recursos escassos em Darfur e abundantes no sul não são a única, nem a principal motivação das duas guerras. Suas causas fundamentais relacionam-se às identidades novas, formadas por meio das crises e da manipulação política pelo Estado. Por fim, Döpcke reputa que a nova operação de paz híbrida, que agregará tropas da ONU às já desdobradas forças da UA, não resolverá essas causas profundas de conflitos violentos no Sudão.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Paper: Conflitos em Debate

A Crise Humanitária em Darfur


Introdução

Por Isabelle Araujo
Desde o começo de 2003, as forças armadas do Sudão e a milícia conhecida como Janjaweed – apoiada pelo governo sudanês, e composto majoritariamente por soldados de origem nômade – conflagaram um conflito armado contra dois grupos rebeldes na região sudanesa de Darfur: o Exército de Libertação Sudanês (SLA, sigla em inglês) e o Movimento pela Justiça e Igualdade (IEM, sigla também em inglês). O objetivo político dos grupos rebeldes é forçar o governo sudanês a tratar dos problemas de subdesenvolvimento e marginalização política da região. Em resposta a essas reivindicações, o governo e o Janjaweed têm utilizado a população civil e grupos étnicos (Fur, Manalit e Zaghawa) como alvo de suas investidas militares, já que eles oferecem suporte aos rebeldes.

Em 30 de julho de 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a resolução 1556 exigindo que o governo sudanês desarmasse o Janjaweed, porém nada foi feito. Devido à grande pressão internacional foi assinado em maio de 2006 um acordo de paz entre o governo sudanês e uma das facções rebeldes. Mais uma vez, várias de suas determinações não foram cumpridas. Em 31 de agosto de 2006, o Conselho de Segurança da ONU deu um passo importante ao adotar a resolução 1706, a qual autoriza o envio de uma força de paz mais ostensiva. Segundo tal resolução, determina-se o deslocamento de tropas da ONU à região. Depois de grande resistência, o governo sudanês concordou com o envio destas tropas, mas sobre certas condições.

Desde então, poucos progressos foram visto com relação à questão no âmbito das Nações Unidas. O Conselho de Segurança tem apenas adotado os relatórios do Secretariado-Geral (resoluções 1755, 1769 e 1784 de 2007) , mas nenhuma resolução definitiva foi proposta. Ao mesmo tempo, aumentam as pressões internacionais por parte de governos e organismos internacionais. Há que se salientar, porém, que as pressões da ONU carecem de consistência interna, já que parte dos entraves são conseqüência de incongruências dentro do Conselho de Segurança advindas da resistência de China e Rússia em apoiar a resolução que prevê o envio de tropas de paz.

Como resultado deste conflito, que já dura quase cinco anos, vários vilarejos rurais foram queimados e destruídos e dezenas de milhares de pessoas foram mortas. Somando-se a esse quadro extremo de violência, tem-se o fato de que milhares de mulheres e meninas estão sujeitas a sofrer violência sexual nas regiões dos campos de refugiados. Estima-se que 2 milhões de civis inocentes tenham sido forçados a abandonar suas casas, muitos dos quais procuram abrigo no país vizinho, Chad. Atualmente, 3.5 milhões de pessoas dependem exclusivamente de ajuda humanitária para sobreviver. Esses dados alarmantes provam que este conflito é ainda mais extenso que o genocídio acorrido em Ruanda (1994).


Educação
Por Juliana Bessa
A educação se faz de extrema importância e tem caráter emergencial na atual situação do conflito em Darfur. Ela possui o poder de estruturar, estabilizar e trazer de volta o sentido de normalidade para aquelas que constituem uma das maiores vítimas da guerra - as crianças, principalmente aquelas que tiveram experiências traumáticas durante este período. Além disso, provê informações essenciais que ajudam a conviver com os problemas atuais, como prevenção do vírus da AIDS. A educação pode ser também elemento de construção da paz na medida em que ela ensina a tolerância e os valores em direitos humanos, dessa forma dá-se uma chance à reconciliação e abre-se a oportunidade para o processo de integração com o fim de formar uma sociedade estável e ordenada.
Atualmente Darfur conta com poucas escolas, quando existentes tais instituições sofrem com superlotação, falta de infraestrutura e de programa de treinamento adequado. Há ainda problema de remuneração de professores e falta de material básico. Os salários dos professores é um dos pontos mais contenciosos, a remuneração paga pelo governo é demasiada pequena para a sobrevivência e, como se não bastasse, ainda não é paga regularmente. O governo, por sua vez, reluta em aceitar o trabalho de professores voluntários de ONGs, pois delimita que a educação deve inicialmente ser realizada em árabe, segundo preceitos do Corão, mesmo havendo boa parte de deslocados cristãos.
Apesar do esforço de organizações humanitárias e comunidades locais, é estimado que em Darfur apenas 28% das crianças em idade escolar freqüentem a escola. No entanto, apesar das baixas taxas o número de meninas que freqüentam uma escola atualmente é o maior já registrado. Por volta de 70% e 80% da população dos campos são mulheres e crianças. De acordo com a UNICEF, mais de um milhão de deslocados são crianças abaixo de 18, sendo 320 mil crianças com idade abaixo dos cinco anos. No que diz respeito à situação dos jovens deslocados, a situação é ainda pior, sem acesso a escolas secundárias, pois são consideradas luxo na situação de conflito, eles possuem poucas chances de continuar os estudos, visto que para isso dependem de transporte para cidades próximas e dinheiro para mensalidade escolar. Essa geração estará vulnerável a exploração e será mais facilmente envolvida em casos de violência.
Após quatro anos de conflito, a postura da comunidade internacional com relação à Darfur é restrita a uma idéia limitada de ajuda humanitária, que não prioriza a área educacional. Normalmente, do total do fundo, não mais que 2% é dirigido à educação. Considerando que a educação é a chave para restaurar a esperança a Darfur é crucial que nesse momento, a ajuda humanitária integre a área de educação e possa coordenar-se com atividades de desenvolvimento de longo prazo.


Grupos Rebeldes
Por Denise Galvão

No início do conflito, havia apenas dois grupos rebeldes principais: o Exército/Movimento de Libertação Sudanês (SLA/M) e o Movimento pela Justiça e Igualdade (JEM). Este último grupo foi fundado por mulçumanos de Darfur fiéis ao líder islâmico Hassan al-Turabi, cujo partido apoiou o golpe de 1989 do presidente Omar al-Bashir. O primeiro grupo teve uma origem diferente. Ele formou-se inicialmente como uma milícia de auto-defesa da etnia Fur em resposta a distúrbios posteriores a um grande período de fome na região em 1987.
Com o desenrolar do presente conflito, estes grupos foram se fragmentando em novos grupos. Esta fragmentação originou-se em grande parte por disputas de poder internas entre os principais líderes destes dois grupos iniciais. Dessa forma, houve uma grande diversificação dos modos de agir e pensar dos grupos rebeldes em Darfur em contraposição à anterior unidade característica destes grupos. Entre os principais grupos que se desmembraram do Exército/Movimento de Libertação Sudanês (SLA/M), temos a facção SLM-Minni, SLM-Abdel Wahid e SLM-Unity. No caso do Movimento pela Justiça e Igualdade (JEM), pode-se citar como principais grupos desmembrados o National Movement for Reform and Development e o Jem Peace Wing. Além destes, ainda existe um número considerável de pequenas facções que surgiram durante os últimos desdobramentos do conflito.
Este aumento no número de grupos rebeldes atuando na região de Darfur resulta num aprofundamento da complexidade do conflito em Darfur. Além disso, o conflito entre estas diferentes facções gera maior instabilidade para a região e dificuldade em alcançar uma paz que satisfaça a todos. Nas últimas negociações de paz realizadas na Líbia, ficou evidente esta grande fragmentação do movimento rebelde em Darfur. Houve uma diversidade de opiniões acerca destas negociações e percebeu-se que, por enquanto, remotas são as chances de colocar todos os grupos numa mesma mesa de negociação com o governo.


O Papel da União Africana

Por José Joaquim

Embora uma organização regional nova – seu ato constitutivo data de 2002 – a União Africana (UA) nasceu da mutação da Organização da Unidade Africana, herdando toda a sua tradição de valorização do princípio da autodeterminação dos povos e preservação dos limites territoriais entre os Estados do continente. Por um lado, prevê-se o direito da União a intervir em um membro, de acordo com decisão da Assembléia, em graves circunstâncias (crimes de guerras, genocídio, crimes contra a humanidade); por outro, reconhece-se o direito dos membros a requerer intervenção da União para restaurar a paz e a segurança. O Conselho de Paz e Segurança da UA é responsável por funções como diplomacia preventiva, peace-making, operações de apoio à paz e intervenção, peace-building, reconstrução pós-conflito e ação humanitária.
Ante a relutância do Conselho de Segurança das Nações Unidas em dirigir esforços à resolução da crise humanitária na região de Darfur, que não comprometia interesses vitais dos membros-permanentes nem de possíveis contribuintes de tropas para uma missão da ONU, a alternativa africana foi escolhida para a gestão do conflito, de modo que foi enviada a African Mission in Sudan (AMIS), com 7 mil peacekeepers. Foi a segunda experiência de uma força multinacional africana. Contou com apoio financeiro da União Européia, logístico da OTAN e político formal do governo do Sudão. Não obstante, considerando as motivações da necessidade de uma intervenção para interromper ou, ao menos, minimizar os impactos da perseguição dos civis por grupos armados apoiados pelo governo central sudanês, pode-se afirmar que na montagem da AMIS há um erro de concepção que limita sua efetividade desde a origem. A opção do possível ante o ideal revela um grau de pragmatismo na decisão de intervir no Sudão.
Adicionalmente, houve outros obstáculos ao êxito da missão, como o número insuficiente de capacetes-verdes, como ficaram conhecidos, nas diversas localidades de Darfur, especialmente nas mais distantes, além da crescente quantidade de refugiados e de deslocados internos, do envolvimento do Chad no conflito armado e da dificuldade para obtenção de novas fontes de recursos e tropas qualificadas para a missão. Assim, a AMIS entrou em crise entre o final de 2005 e o início 2006, incapaz de conter a insegurança. Isso aprofundou o debate sobre o envio de uma missão sob a égide das Nações Unidas. A Resolução do Conselho de Segurança 1.706, de setembro de 2006, que condicionava a iniciativa ao consentimento das autoridades sudanesas, porém, foi rejeitada pelo presidente Omar al-Bashir, até junho de 2007. A AMIS deverá ser incorporada a uma reforçada missão de paz das Nações Unidas, ainda sob comando africano. A missão híbrida da UA-ONU está prevista para alcançar um efetivo de até 19 mil homens.


A China e o Conflito em Darfur

Por Isabelle Araujo

A posição chinesa com relação ao conflito em Darfur tem sido controversa. Os chineses defendem que o envio de tropas de paz das Nações Unidas para a região seria uma boa opção, e de fato a mais realista. Mas ao mesmo tempo, continuam a não apoiar a resolução do Conselho de Segurança da ONU que permitiria o emprego das forças de paz. Além disso, têm satisfatoriamente influenciado a Rússia a agir da mesma maneira. Essa situação diminui ainda mais a pressão internacional sobre o governo sudanês e dificulta sobremaneira a pacificação da região.
O principal argumento da China é o de que o governo sudanês não está pronto para aceitar forças de paz em seu território. Os chineses, porém, têm sido alvo de duras críticas da comunidade internacional. Como principal parceiro comercial do Sudão e o maior investidor e consumidor do petróleo sudanês, acredita-se que China tenha o poder de pressionar o governo de Al-Bashir a aceitar o envio de tropas a região. Mas não é do interesse chinês assumir tal atitude, já que eles temem que uma mudança de configuração de poder no país possa retirar sua posição privilegiada na exploração de petróleo sudanês.
O que é ainda mais notável é que, enquanto a maioria das companhias de petróleo ocidental se retiraram do Sudão devido a pressões por parte de organizações internacionais de direitos humanos, as empresas chinesas mantiveram-se lá, fingindo não ver a escalada de conflito ao seu redor e também não se importando que o governo sudanês use a renda auferida da extração de petróleo para comprar armamentos que serão usados no conflito em Darfur.
A escolha chinesa, contudo, não é sustentável no longo prazo. A demora na resolução do conflito pode fazer com que spillover effects causem a generalização do conflito para outras partes do país, comprometendo assim a estabilidade política, podendo inclusive causar falência estatal, seguida da perda de condições de exploração econômica do petróleo sudanês por parte das companhias chinesas.

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Referências Bibliográficas


Leaders: That other war; Sudan. (2007, Outubro). The Economist, 385(8551), 17. Acessado em November 18, 2007, de ABI/INFORM Global database. (ID do Documento: 1368629011).

Calling on China: The China-Darfur Connection. (2004, Agosto 5). Brookings Website. Acessado em Novembro 18, 2007 de
http://www.brookings.edu/opinions/2004/0805africa_cohen.aspx

Responsible China? Darfur exposes Chinese hypocrisy. (2006, Setembro 6). The Washington Pos, A 14. Acessado em Novembro 18, 2007 de
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/09/05/AR2006090501187.html

R. Scott Greathead (2007, November 6). Moving China on Darfur. Wall Street Journal (Eastern Edition), A.18. Acessado em November 18, 2007, de ABI/INFORM Global database. (ID do Documento: 13779671).50

Rebel Groups in Darfur (07/04/2006). Acessado em Novembro 18, 2007 de:http://www.pbs.org/newshour/indepth_coverage/africa/darfur/rebel-groups.html.
Who are Sudan's Darfur rebels?(12/10/2007).Acessado em Novembro 18, 2007 de: http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/7039360.stm.

Two main Darfur rebel groups will not attend talks(26/10/2007). Acessado em Novembro 18, 2007 de: http://www.savedarfur.org/newsroom/clips/two_main_darfur_rebel_groups_will_not_attend_talks/

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Era das Revoluções Legitimadas e a Garantia dos Direitos Civis

Por Amena Yassine*


É parte do processo revolucionário o retorno ao equilíbrio. Hannah Arendt observa que o próprio termo revolução indicava, em sua origem, momento de regresso ao estado de harmonia. Foi a Revolução Francesa a introdutora do significado de “ruptura” ao vocábulo, que, mais tarde, adquiriu o traço de “turbulência permanente” em função da intenção bolchevique de formar ativistas comprometidos a levar incansavelmente a Revolução de Outubro por todo o mundo. A experiência histórica – da Bastilha à Comuna de Paris e das massas de Petrogrado ao Muro de Berlim – revela, contudo, que a revolução contínua é contraproducente, pois intercala períodos de ingovernabilidade, autoritarismo e desrespeito aos direitos e garantias fundamentais. O homem revolucionário contemporâneo percebe que a tolerância e o debate – inclusive com a oposição – é menos um conluio entre classes sociais que uma posição política cujos fins maiores são o ser humano, seu progresso e evolução.
O argumento da existência de maquinação entre revolucionários e o “establishment” anterior a eles fundamenta a necessidade de revoluções ininterruptas, que, na França, fizeram alternar no poder girondinos, jacobinos, napoleões, bourbons e oranges. Eram governos ou de republicanos, ou de oligarcas, ou de monarquistas, ou de imperialistas. A primeira fraqueza dessas revoluções reside no fato de elas reduzirem os interesses nacionais a projetos políticos excludentes e parciais. Decorrente desta, a limitação seguinte é a perda de um dos objetivos fundamentais dos Estados em geral: a preservação do indivíduo. A rigor, são características comuns às administrações revolucionárias dos dois últimos séculos a subjugação de grupos étnicos e, entre outras, a intransigência religiosa, política e cultural. Um sem-número de exemplos históricos consubstanciam a observação alvitrada, basta lembrar da ex-Iuguslávia, do Irã, da ex-União Soviética.
É tendência das atuais democracias ocidentais a articulação política entre governantes e os vários setores de sua sociedade. Sobremaneira após o declínio da União Soviética, a ampliação da democracia no mundo tem possibilitado mudanças econômicas, sociais e políticas sem traumas generalizados. O Chile de Lagos e Bachelet, o Brasil de Lula, a Espanha de Zapateiro e o Reino Unido de Tony Blair são os mais notáveis exemplos do quadro descrito. Há quem entenda o diálogo entre conservadores, trabalhistas, liberais e socialistas, entre outros, como perversão do processo revolucionário. Francis Fukuyama, por sua vez, apresenta alternativa mais ponderada para o entendimento do fenômeno. Segundo ele, a democracia liberal constituiria a síntese das demais formas de governos. A despeito da polêmica que o assunto possa inspirar, uma conclusão é certa: com a dissipação da idéia de revolução como momento de ruptura, as diversas minorias deixaram de ser hostilizadas e passaram a compor o espaço de definição dos interesses nacionais de seus países. As revoluções democráticas são resultados do equilíbrio entre os distintos anseios sociais.
Depois de viver dois períodos de ruptura institucional, o Brasil experimenta, desde meados da década de 1980, a era das “revoluções legitimadas”. As Revoluções de 1930 e 1964 instalaram no País governos autoritários que, em nome da “causa revolucionária”, restringiram em vários aspectos as liberdades civis. Com o retorno ao regime democrático, a sociedade brasileira demanda participação ativa no processo de formulação política e rechaça o radicalismo. É indiscutível, por exemplo, que o êxito do Partido dos Trabalhadores-PT dependeu, em grande medida, da reformulação de seu discurso de “superação” da ordem econômica vigente, do abandono de uma retórica excludente e da adoção de políticas inclusivas e consensuais.
Importa observar, contudo, que há setores no continente em que a retórica da mudança radical e traumática ainda encontra eco. As recentes imagens de violência contra protestos de estudantes venezuelanos, que deixaram saldos de mortos e feridos, trazem à lembrança tristes recordações de momentos em que a diferença foi ferozmente reprimida em nome de projetos de organização social e política muitas vezes até louváveis e desejáveis, mas que se revelaram cruéis e intolerantes. As imagens também servem para demonstrar uma chocante realidade sobre o comportamento humano: os radicalistas parecem não ter aprendido com os erros do passado. Fenômeno que o controverso e mal-compreendido filósofo Nietzche certa vez denominou de “mito do eterno retorno”. Os desacertos se repetem, como se as vítimas dos campos de concentração, dos Gulags e das celas de tortura fossem mesmo apenas números ou fantasmas do passado. As imagens lembram mais. Lembram a vulnerabilidade dos regimes democráticos.
O regime democrático está longe de ser o ideal. Entre os filósofos, desde os clássicos aos mais modernos, a democracia nunca foi entendida como um sistema perfeito. É conhecido que para Aristóteles essa forma de organização política era tida como viciada, pois era um sistema político que privilegiava exclusivamente os pobres. Certamente Aristóteles não era opositor dos pobres. O problema daquele regime estava na palavra “exclusivamente”. Para o filósofo clássico, a melhor organização política era aquela que congregava todos indiscriminadamente, inclusive os ricos, e que contribuía para o desenvolvimento das virtudes de cada indivíduo. Era a República, não o autoritarismo das massas, o regime menos propenso às guerras em Paz Perpétua. De toda forma, na práxis, as democracias contemporâneas mostraram-se mais eficazes na promoção dos direitos das minorias, no diálogo produtivo com as oposições e na garantia de estabilidade durante os processos de alternância política.
Para que os povos do continente americano continuem a desfrutar do exercício pleno dos seus direitos civis, importa que os governos locais reforcem seu compromisso com a democracia. A cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia é a formalização, por parte dos Estados-membros do Mercosul, do entendimento da relevância do tema para o desenvolvimento regional e de seus povos. Merece uma discussão responsável e cuidadosa, pois, o ingresso da Venezuela ao bloco, para se evitar que o consenso formado a respeito dos benefícios da democracia seja rompido.
O ponto de equilíbrio a que chegaram os governos sul-americanos é o de revolução no seu sentido original. É um estado em que as desconfianças são mitigadas e o diálogo estabelecido. Em vez de suprimir a oposição, entende-se agora que melhor é integrá-la ao processo de definição do interesse nacional. Em vez da ruptura com o descontente, entende-se agora que melhor é convidá-lo à mesa para que se definam mais apropriadamente os interesses do continente. É o estágio maduro da interação com o outro. A exclusão da Venezuela desse processo é seguramente indesejável, mas a sua entrada no bloco deve servir para fortalecer o consenso, e não desfazê-lo. O ser humano e seu desenvolvimento devem estar acima de quaisquer projetos políticos pessoais ou partidários, e não o contrário.

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* Professora de Teoria das Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, UnB.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Security in Africa: The establishment of Political, Economic and Social Stability*

By Isabelle Araujo



The creation of a security community in Africa depends on, first, making sure that political, economic and social reforms are underway. Countries cannot act cooperatively in an unstable environment. A Standby Force cannot be made out of malfunctioning troops and a security force cannot be subordinated to a weak regional organization.
The three main structural sources of instability in Africa are: ethnic differences often increased by politicized internal struggles; lack of political maturity, resulting in a number of failed states throughout the continent; and the concentration of natural resources in small regions, responsible for many of Africa’s secessionist wars.
It might take decades for Africa to overpass these structural flaws. Though, the formulation of stable States, thriving economies, and egalitarian civil societies can lessen the effects of those historical and natural legacies.
Africa is now wrapped in the vicious circle in which internal instability leads to conflict, which causes State's failure, and consequent economic crashes, ultimately resulting in more instability. Hopefully, by working along with developed States, international organizations, NGOs, the World Bank, IMF, and also by making a strong local effort, Africans can leave this terrible vicious circle aside and move into a beneficial virtuous circle where solid States guaranteeing economic wealth, can transform the structure of civil society and increase the country's overall stability.
International help is decisive to rebuild African countries and, therefore, guarantee international security. Many African governments support terrorist activities or are too weak to prevent terrorist cells to reside in the country. Not to mention the various networks of drug dealers which are encrusted in those regions. The solution for some of African security issues would, at some extent, contribute to the solution of developed countries security weaknesses. It is not to say that the political and social reforms will solve, alone, the terrorism problem or the international drug trafficking. Though, it will certainly help to suppress illegal operations.
Building stronger States should be a priority in the peace building process. Alongside the political reform, come important macro-economic reforms to improve the nations' economy. Africa has had and astonishing rate of population growth in recent years, in spite of the spread of endemic diseases. At the same time, though, its Gross National Product decreased, and was not able to keep up with the increasing population. In addition, its rate of economic growth decreased significantly since the 1970s. Those circumstances generated economic stagnation. To reverse this trend for economic recession it’s mandatory for the States to, initially, establish a free market economy, in which governmental interventions are rare and not molded by personal interests.
The widespread idea of "African Solutions for African Problems" cannot be proved to be the right one. In order to solve its own security problems, Africa would need to engage in peace making and peace enforcement, promote arms control and disarmament, take collective decisions and solve interstate disputes. No organization in the continent is able to do that. African Unity is a good candidate for the job, but it has proved, by past experiences, to be really ineffective, or at least less effective than external agents. The organization lacks not only capable personnel and sufficient resources, but also active support from African States, which are much more concerned with their own political or socioeconomic problems. States' full engagement is crucial to the survival of any international organization, and should somehow be enforced rather than built on self-reliance.
Africa has to cope with a legacy of unstable political, economic and social institutions for, perhaps, many years to come. The continent needs external help to build strong political institutions, in order to complete its full insertion into international life, in a way that its people can profit from the globalization process, and not suffer from it.
The construction of Africa's Security System is, undoubtedly, a major step in this direction, but it will take more than the creation of regional organizations to get the job done. There must be initiated a process of countries’ internal reforms, given that States which have solid institutions are much more capable of assuming its internal functions as well as its international responsibilities.

Development is deeply connected to peace. So as long as the continent does not find its way to peace, it will suffer from the evils of poverty.
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* Nota: O presente artigo é um excerto de um Ensaio de mesmo título escrito pela autora em abril de 2007. Sua versão original é também em inglês, mas algumas alterações foram feitas para a adequação ao formato do blog.

Mapa: "Failed Attempts at Democracy" By Philippe Rekacewicz, Le Monde Diplomatique. Acessado no dia 09/11/07, url: http://mondediplo.com/maps/africademomdv51
Tradução da Legenda do Mapa:
- Processos democráticos quase respeitados
- Democracias de fachada ou regimes semi-autoritários
- Processos democráticos interrompidos por um golpe de Estado
- Processos democráticos impossíveis (conflito territorial, guerra civil, Estados decadentes controlando apenas uma parte de seus territórios)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A pobreza provoca a violência na África ou a África é pobre por ser violenta?

Uma cultura de violência e personalismo na política ainda marca os jovens Estados africanos

Por Denise Galvão

Há décadas o continente africano é vítima de uma coincidência dramática: conflitos armados e pobreza. Como as guerras não estão presentes em todos os contextos de miséria, conclui-se que a pobreza nem sempre é capaz de causar conflitos violentos por si só. Apesar disso, deve ser observada como uma causa – ela contribui de maneira decisiva para que as guerras aconteçam.

Grupos insurgentes costumam alegar que querem substituir um determinado governo para que, com o poder em mãos, possam defender segmentos marginalizados da sociedade em regimes nãodemocráticos. Afirmam que a idéia é conferir-lhes expressividade política e promover seus interesses sociais e econômicos, a fim de reverter injustiças. Essa motivação costuma atrair amplo apoio popular à iniciativa de travar uma guerra civil.

No decorrer de vários conflitos na África, porém, os combatentes empregaram táticas de guerra, como o recrutamento de crianças, a servidão sexual, as mutilações de civis, o deslocamento forçado e a limpeza étnica. Quando rebeldes voltam-se contra a própria população, torna-se evidente que há outros fatores envolvidos, além da luta contra a marginalização.

As causas fundamentais desses conflitos estão, em geral, relacionadas à fraqueza e à pouca – ou nenhuma – legitimidade dos governos. Uma cultura de violência e personalismo na política ainda marca os jovens Estados africanos, herdeiros do domínio colonial europeu. Essa fragilidade manifesta-se no caráter vulnerável a intervenções internacionais e na permissividade ao mercado informal, que possibilita a circulação de armas ilegais. Ao agir em nome de interesses privados, o Estado permite que outras forças políticas – incluindo grupos armados – preencham o vácuo do poder público.

É interessante notar que na África há um paradoxo entre a pobreza do povo e a riqueza da terra. Ao mesmo tempo em que o continente concentra os piores índices de desenvolvimento humano, também tem reservas de extraordinárias riquezas naturais, como petróleo, diamantes, ouro, cobre, cobalto e coltan (liga metálica usada na fabricação de componentes eletrônicos). Parte dessas riquezas foi drenada para financiar a violência contra as próprias populações africanas – como, por exemplo, os “diamantes de sangue” de Angola, Congo e Serra Leoa. Outra parte enriqueceu grandes investidores estrangeiros, com as bênçãos de governos instáveis e corruptos.

Conflitos prolongados e de difícil solução, como é o caso dos países que compõem o Chifre da África, não só causaram mortes, mas também pioraram as condições de vida dos sobreviventes – entre os quais imensas massas de refugiados. Dessa forma, percebe-se claramente a correlação entre miséria e conflitos armados: ao mesmo tempo em que a miséria consiste em uma causa profunda de guerras, também é intensificada pelas práticas de extrema violência, num ciclo vicioso dos mais cruéis.

Denise Galvão é mestra em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais da Universidade Cândido Mendes.